Há algum tempo, deparei com um documentário chamado Dançando com o Diabo, sobre a relação de algumas igrejas evangélicas do Rio de Janeiro com o tráfico. Um dos personagens me impressionou muito: o Pastor Dione. Ele basicamente tinha um acordo com as facções rivais para que não matassem seus inimigos, apenas dessem uma surra e levassem pra ele, que cuidava dos espancados e dizia: salvei sua vida e você é meu. Assim, Pastor Dione criou um exército de (ex?) traficantes renascidos em Cristo que iam pregar para outros traficantes. As cenas daqueles homens com os rostos cobertos orando com fuzis nas mãos me impressionaram demais. Era muito perigo, era muito poder, era um combo explosivo do pior tipo: dinheiro, drogas, poder e religião.
Passei mal de ver, há alguns dias, imagens de traficantes armados invadindo terreiros e obrigando Pais e Mães de Santo a destruírem seus terreiros “em nome de Jesus”. Mas são traficantes, alguns dirão. Eles agem assim, alguns dirão. Ocorre que o discurso deles, o exato discurso deles, com exceção da ameaça de morte com fuzil na cara, é repetido no Congresso Nacional por quem está lá no poder, pior, legitimamente: deputados fundamentalistas (é injusto colocar todos os evangélicos no mesmo balaio que esses fanáticos), ignorantes, espalhando intolerância e ódio em nome de um Jesus que com certeza não aprovaria nada do que eles fazem em seu nome.
Outras colunas da Clara
Há um projeto de poder e ele está se concretizando. Há um projeto de regredir e ele está muito claramente andando. Existe, sim, relação entre terreiros destruídos e um juiz aprovar que gays sejam “curados”: é o mesmo discurso fundamentalista por trás de tudo.
A ideia de que alguém possa ser “curado” de sua orientação sexual é assustadora por si só. Orientação sexual não é doença. Freud, em 1903, já dizia: “a homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. Eu tenho a firme convicção de que homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isso nos obrigaria a tratar como doentes um grande número de pensadores que admiramos, justamente em razão de sua saúde mental”. Há quem argumente que o tratamento não é coercitivo, ou seja, só vai se tratar quem quiser. E repito: como tratar algo que não é doença? Se alguém se sente “doente” por conta de sua orientação sexual, sofre de depressão, pensa em suicídio e se sente um pária, isso não vem do nada, não surge do vácuo; há todo um discurso conservador reafirmando isso, pressionando para que a heterossexualidade seja considerada o normal e o todo o resto seja anormal, desde a homossexualidade até a existência de pessoas trans. Somos todos normais. Não há ninguém doente.
Doente está este país, que não para de regredir, que quer patologizar a sexualidade, controlar a vida, o corpo, o desejo dos indivíduos. Que já controla o corpo das mulheres. Que quer encarcerar pessoas mais e mais jovens, que quer criminalizar a pobreza, que quer voltar no tempo. Tenho tido pesadelos e vivido alguns outros, mas nenhum deles se compara à distopia que virou viver no Brasil nesses tempos.