:: O homem médio e o mínimo a ser feito :: Alguém chega para um homem e diz para que ele “se respeite”?:: A violência dos nossos filhos não é “só uma brincadeira”
Esses dias eu descobri finalmente o que é o tal gatilho que tanta gente evoca. O trigger, gatilho mesmo, na nossa língua pátria.
Tive uma crise de ansiedade tão forte que meu corpo jogou pra fora todas as coisas que eu tinha comido durante o dia inteiro. Suei frio, quis sumir, morrer, vomitei.
Passei um dia inteiro dando um depoimento detalhado para o filme Mexeu com Uma, Mexeu com Todas, da Sandra Werneck, que já está passando em alguns festivais, sobre o estupro que sofri quando tinha 13 anos. Já tinha escrito sobre isso, mas trocar com outra mulher que também sofreu essa violência em outras circunstâncias (igualmente horríveis), e ainda diante de uma equipe e na frente de câmeras foi bem horrível. Tentei levar na leveza, já contei essa história algumas vezes, mas foi diferente. Lembrei de umas coisas, uns detalhes. Foi intenso da pior forma. Mas a gente tem que falar sobre isso.
Leia mais colunas de Clara Averbuck:
Na época, eu não falei pros meus pais porque fiquei com medo de me culparem. Eu mesma me culpava. Hoje, sei que a culpa não foi minha. Não, nem um pouquinho. Não, não foi "só" porque eu estava bêbada. Não interessa quanto tempo passe, 20, 30, 40 anos, eu nunca vou esquecer. Nunca vou esquecer o julgamento silencioso e jocoso das pessoas da minha escola. Eu tinha transado no banheiro com vários caras, eu era uma vagabunda. Ninguém me perguntou se era verdade, ninguém me perguntou se eu queria. Nunca senti tanto ódio. Acho que aquele ódio me move até hoje. Aquele ódio não me deixou agir como vítima, e eu, em vez de cair em depressão e querer sumir, resolvi retomar o controle do meu corpo da forma que dava: fazendo sexo. Com quem EU quisesse. Retomando o consentimento que me tinha sido tirado. Isso eu só entendi anos depois. Eles, eles eu acho que jamais tomaram consciência do que fizeram. Duvido que se vejam hoje como estupradores. Talvez sejam pais de família. Talvez suas esposas, suas filhas estejam lendo esta coluna. Talvez eles se considerem homens de bem até, ora, faz tanto tempo, né? Pois eu nunca vou esquecer.
Terminei aquela diária de gravação querendo encher a cara. Enchi. Melhorei. Encontrei amigos muito queridos, tive muito amor. Aí acordei no dia seguinte e precisava escrever um depoimento sobre outro momento horrível da minha vida, que foi quando caí em uma depressão tão profunda que eu nem queria ser ajudada, só queria morrer e sumir. Não morri e não sumi (quase; perdi uns 20 quilos e boa parte da minha humanidade), mas duas coisas horríveis da minha vida remexidas em um espaço de tempo tão curto me deixaram em um estado de ansiedade tão violento que meu corpo entrou em parafuso. Eu tremia por dentro. E não queria demonstrar porque estava na casa de uma amigona e a filhinha pequena dela estava lá. Eu tinha que ir na exposição de uma outra amiga, estava tentando respirar, me controlar, me maquiar, sair da paralisia, mas tinha um buraco negro dentro de mim que estava sugando toda a minha vontade de qualquer coisa. Achei que talvez melhorasse se saísse de casa. Quando me forcei, me vesti, levantei do sofá, aí meu corpo disse: NÃO. Você não vai sair de casa. Você não vai. Vomitei. Não fui. Ainda bem que vivo cercada de pessoas maravilhosas que me ampararam, me medicaram (pra coroar, esqueci meu ansiolítico em São Paulo e estava no Rio) e eu melhorei. Demorei. Mas melhorei.
E por que eu estou escrevendo isso agora? Porque est amos todos sujeitos a passar por algo assim. Pode ser que aconteça. Depressão. Ansiedade. Pânico. A vida nos adoece. A sociedade nos adoece, as notícias nos adoecem, as injustiças nos adoecem. Não é coisa de gente fraca. Você não precisa ter vergonha. Eu tive vergonha no dia. Como assim, eu estou tendo uma crise dessas? Como eu não consigo me controlar? Eu, fortona, eu, que me amparo há anos? E também por que eu lembrei de uma pessoa, que, certa feita, se referiu a uma vítima de estupro que estava contando sua história anos depois como alguém querendo chamar atenção com algo que certamente já deveria ter sido superado.
Não seja essa pessoa. Não seja nunca essa pessoa. Ninguém sabe das cicatrizes do outro. Não seja jamais essa pessoa. Ninguém é imbatível, ninguém é de ferro e cada um lida com a dor do jeito que dá, no silêncio, na terapia, no abraço. Isso sou eu lidando com a minha escrevendo, que é o que eu sei fazer. Vai que ajuda mais alguém.