O capetinha mal encarado que olha sério para quem pega a garrafa está longe de provocar sustos ou antipatias. Basta ver no rótulo o semblante ornado pelos chifrinhos para saber que o vinho é o chileno Casillero del Diablo, uma espécie de fenômeno capaz de agradar a quase todos os paladares. Para muitos, é uma bebida especial, reservada às celebrações. Para outros, é um vinho regular e honesto, para o dia a dia. Para (praticamente) todos, um vinho apreciável, em maior ou menor medida. Donna foi conhecer a lenda que deu origem a este vinho e descobrir um pouco mais sobre um dos rótulos mais bebidos no mundo e no Brasil.
Tudo começou em 1883, data de fundação da vinícola Concha y Toro, na região do Vale do Rio Maipo, nas cercanias de Santiago, a capital chilena. Antevendo a vocação para a vitivinicultura do país, o político e empresário Don Melchor Santiago de Concha y Toro importou da região de Bordeaux, na França, algumas cepas para plantar e vinificar em sua propriedade. Em pouco tempo colheu uvas de boa qualidade, que lhe rendiam vinhos interessantes. Homem visionário, investiu na produção da bebida e em pouco tempo já vendia para todo o Chile. Mas Don Melchor também era bom bebedor. Guardava, então, para si, os melhores exemplares de cada safra. E é aí que começa a lenda do diabinho.
Para guardar esses vinhos especiais, o empresário mandou construir uma cave subterrânea, um casillero, algo como se fosse um arquivo especial, em castelhano. Ali, em condições ideiais de temperatura e umidade, ele escondia as bebidas que selecionara para o seu deleite. Logo os empregados da propriedade souberam que ali estavam os melhores dos melhores e, como ninguém é de ferro, garrafas começaram a desaparecer.
Furioso com os sucessivos sumiços, Don Melchor espalhou, ardilosamente, um boato de que o próprio diabo vivia dentro daquele casillero, assombrando o lugar. Em princípio, ninguém levou muita fé na história, mas os ruídos próprios de um local subterrâneo e ermo ajudaram a dar veracidade ao relato. Bastou que um ou dois empregados vissem sombras e ouvissem barulhos no local para que o rumor se espalhasse. Em pouco tempo, ninguém mais se atrevia a tirar um só vinho daquela cave, que ficou conhecida como Casillero del Diablo.
Nos caminhos ensolarados e muito verdes da vinícola mais visitada do Chile (cujo público é formado, na sua maioria, por brasileiros), a velha cave subterrânea é um dos pontos altos do tour. Com as portas fechadas, quando a escuridão é completa, uma animação projetada nas paredes de tijolos conta os detalhes da lenda. Com direito a narração em português, para agradar os muitos grupos brazucas que baixam por lá. Depois do filme, a guia explica que a cave que teria o próprio diabo como morador não guarda o vinho que leva o seu nome. Por ser o único local da vinha em que umidade e temperatura não precisam ser controladas artificialmente, a cave guarda o mais prestigioso vinho da Concha y Toro: o Don Melchor, que envelhece por ali nas garrafas e barricas de carvalho, incomodado apenas pelos ruidosos turistas.
? Tu achas que essa lenda tem alguma verdade? Será que Don Melchor inventou essa história de diabo mesmo? ? perguntei para a guia Bárbara Venegas, que capricha no português aprendido em Portugal.
? Não, não tem nenhuma verdade, é lenda mesmo. Mas tem muita gente que não vem aqui à noite.
? Por quê?
? Ah, ouvem ruídos. E tem gente que já viu vultos, ficou assustada.
? E tu, vens aqui à noite?
? Não! Claro que não! ? exclamou ela, sem nenhuma convição de que a história é só lenda.
Os turistas passeiam na antiga cave subterrânea em que Don Melchor de Concha y Toro guardava seus melhores vinhos
Foto: Casillero del Diablo/Divulgação
Lenda na taça
Don Melchor aproveitou como pôde a preservação de seus tesouros, mas não viveu muito tempo além disso. Morreu nove anos depois de fundar a vinícola. Mesmo assim, plantou uma herança que se transformou em um dos maiores impérios da indústria do vinho do mundo. Na década de 1950, quando a Concha y Toro já era a maior vinícola do Chile, uma equipe pensou em resgatar a pitoresca história criada pelo fundador para nomear o vinho que seria, no futuro, conhecido mundialmente pela qualidade, pela capacidade de conquistar diferentes paladares e, principalmente, pela simpatia que a figura do tinhoso estampada na garrafa provoca.
Vendido para 135 países, o vinho tem no Brasil um dos cinco maiores mercados do mundo. Para atender a demanda, a Concha y Toro abriu, há quatro anos, um escritório em São Paulo. Segundo o gerente de Marketing da marca Casillero del Diablo, Sebastián Aguirre, são vendidas cerca de 1,7 milhão de garrafas anualmente no Brasil. E o número só aumenta.
- Os brasileiros têm consumido mais vinho a cada ano. Por isso estamos presentes - afirma.
Campanhas de alcance mundial valorizam a vocação do Casillero, que já nasceu para ser um produto voltado à exportação. Um exemplo disso é a parceria fechada com o clube de futebol inglês Manchester United. Como vinho oficial do time, o Casillero del Diablo está presente nos jogos e eventos do grupo que também é chamado de Red Devils (diabos vermelhos). Por restrições impostas pela legislação brasileira, a campanha não passa no país. No resto do mundo, é uma das principais estratégias da marca para ganhar visibilidade. Mesmo sem a campanha, basta olhar para o desempenho das vendas do vinho no Brasil para perceber que, mesmo sem a ajuda dos Diabos Vermelhos, o diabinho da garrafa já enfeitiçou os paladares por aqui.
Os parreirais com a uva símbolo do Chile, por onde a guia Bárbara Venegas conduz os visitantes brasileiros
Foto: Patricia Lima