Foi com enorme força que o cinema da Romênia emergiu nos anos 2000, conquistando prêmios nos festivais e encantando a crítica com a inventiva diversidade com que retratava um tema, a rigor, único: a vida no país sob o garrão do regime comunista, numa vertente, e, na outra, a adaptação aos ventos globalizados que sopraram com o desmantelamento da União Soviética e a deposição e execução pública do ditador romeno Nicolae Ceausescu, em 1989.
Cristian Mungiu é um dos cineastas que encontraram neste contexto histórico durante e imediante pós-Ceausescu matéria-prima para obras impactantes como o seu 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2007. O diretor forma com Cristi Puiu (A Morte do Sr. Lazarescu), Catalin Mitulescu (Como Festejei o Fim do Mundo) e Corneliu Porumboiu (A Leste de Bucareste e Polícia, Adjetivo) a poderosa linha de frente do cinema romeno.
Em cartaz na Capital (no Guion Center 1), Além das Montanhas é o longa seguinte de Mungiu ? antes, ele comandou um time de (mais) jovens realizadores no excelente projeto coletivo Contos da Era Dourada (2009), com curtas-metragens cômicos sobre os conflitos da vida cotidiana à época do comunismo, do racionamento de produtos ao peso da burocracia estatal nas questões mais prosaicas.
Como em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, que tratava dos riscos ? o físico e o legal ?enfrentado por uma jovem determinada a fazer um aborto, o ponto de vista em Além das Montanhas é feminino. Mungiu, porém, radicaliza ainda mais na secura narrativa e no naturalismo da encenação, elementos que lhe são característicos. Ele desafia o espectador a preencher as lacunas da trama inspirada numa história real que virou caso de polícia, em 2005 ? sobre a qual se poupa detalhes para não amortecer seu desfecho.
Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan), as protagonistas, são amigas que cresceram num orfanato. Alina foi viver na Alemanha e agora está de volta a uma região rural da Romênia para buscar Voichita, convidando-a para ir trabalhar com ela em um navio de cruzeiro.
Mas Voichita vive agora num monastério cristão, focada com fervor na devoção religiosa. A vontade de viver a experiência com a amiga e dá mais pelo desejo de ajudar Alina a encontrar um rumo do que pelo desencanto com os rigores da vida clerical. No entanto, Voichita esbarra na relutância do padre que comanda o lugar, figura masculina austera tratado pelas mulheres que ali vivem com "pai". A visão estreita deste homem antecipa o choque com a garota recém-chegada de uma cultura liberal, que ele despreza e vê como contaminção à pureza de seus dominíos. O confronto entre o "pai" e Alina tensionará o lugar em máxima potência.
Além das Montanhas ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, e Cristina e Cosmina, ambas estreantes,compartilharam o troféu de melhor atriz, justo reconhecimento ao excepcional trabalho delas. É um filme exigente esse. No decorrer de quase duas horas e meia, Mungiu mantém o espectador à distância, para o bem (a proposta do olhar observador é representada na bela fotografia captada entre sombras e emoldurada em composições que remetem a pinturas) e para o mal (não permite maior empatia pelos personagens, sobre os quais pouco é revelado).
Acompanhamos o progressivo surto de Alina sem compreender por completo as razões de seu desatino. Fica sugerida uma tensão sexual entre as amigas, uma paixão rompida pelo destino que Aline quer reparar e Voichita, agora, embaralha com a culpa pecaminosa. Mas Mungiu deixa em aberto as razões para a súbita aversão de Alina ao lugar e ao "pai" em especial (o que ele fez ou disse a ela no momento em que ficaram a sós foi o estopim?).
Causa estranhesa a reação dela ao religioso porque o personagem dele ? o que fica em primeiro plano ? não parece tão terrível ao público. Trata-se de um sujeito impermeável ao mundo exterior, mas que, agindo conforme seu dogma e seus códigos morais ? inabaláveis, diga-se, em um guardião da fé em qualquer credo ? mostra sinais de benevolência e tolerância durante a crise.
A visão crítica de Mungiu ao Estado opressor se transfere aqui para esse microcosmo atual, que resiste aos novos tempos regrado pelo obscurantismo religioso medieval. A troca do componente político coletivo pelo tema religioso personalizado é ousada, mas talvez em demasia. A frieza resultante, embora possa atender às ambições estéticas do diretor, compromete tanto o impacto vislumbrado, por diluí-lo na excessiva duração, quanto o maior envolvimento do espectador com a história. E deixa muito frágil a analogia que, em resumo, é a buscada pelo roteiro: o desejo de liberdade em uma socidade repressora é como uma possessão demoníaca a ser exorcizada.