A expressão é tão serena, e a fala, tão tranquila que nem parece que a senhora de 86 anos que adentra o Castelinho do Alto da Bronze é Nilza Linck.
Nilza é a própria musa para quem a bizarra edificação medieval foi construída, no fim dos anos 1940, em pleno Centro de Porto Alegre. Conheceu Carlos Eurico Gomes, afamado político da época, ainda no início daquela década, quando tinha 18 anos. Já era mãe de um garoto e, como costumava-se dizer, com certo espanto quando se tratava de mulher tão jovem, “desquitada”.
Em vídeo, confira o relato de Nilza Linck:
A paixão, da parte dele, fora tão fulminante que o homem não apenas construiu um castelo para ela (precisamente na esquina das ruas Vasco Alves e Fernando Machado) como fez de Nilza a sua Rapunzel, mantendo-a durante quatro anos sob uma vigilância tão rígida que a impedia de se aproximar das janelas do prédio.
– Que coisa boa poder olhar para fora – ela diz, debruçada sobre o parapeito de uma das aberturas do castelinho. – Como eu tinha vontade de fazer isso naquele tempo e não podia. Qualquer movimento meu era motivo para despertar ciúmes nele. Chegava a vir com o revólver para cima de mim. Isso que, como só fui descobrir mais tarde, ele era casado. Não dei sorte com os homens.
Nilza deixou a casa onde mora com a filha adotiva, o neto e inúmeros gatos e cachorros para visitar o Alto da Bronze na segunda-feira à noite, a convite dos sete artistas plásticos que usam o castelo como ateliê. Foi a terceira vez que ela voltou ao local desde que se libertou, mais de meio século atrás – mas apenas a primeira em que foi bem-recebida.
– Ainda nos anos 1950, soube que ali funcionava uma boate. Tive de ir lá conferir o que tinham feito do lugar em que morei – contou, com bom humor. – Fiquei quieta, mantendo-me anônima enquanto ouvia os frequentadores contarem histórias, todas falsas, sobre “o que teria acontecido com aquela mulher que morava no castelinho”. Diziam que eu tinha fugido do rico proprietário para me casar com um homem pobre e vivia na sarjeta, vê se pode. Pior é que de lá pra cá ouvi lendas ainda mais absurdas.
Uma outra tentativa de visita se deu no ano passado. Mas ainda havia um litígio judicial sobre a propriedade do edifício, e o atual dono achou por bem não permitir a sua entrada. Esta semana Nilza se mostrou orgulhosa por servir de inspiração sobretudo para as mulheres que trabalham no anacrônico edifício.
– Não me sinto um exemplo de mulher à frente do meu tempo – ela respondeu, ao ser interrogada pelas artistas Elen de Oliveira e Lena Kurtz. – Analisando hoje talvez eu até tenha sido, mas à época não tinha nenhuma noção disso. É que atualmente as mulheres têm se valorizado cada vez menos. Quando eu era jovem podíamos ter menos valor aos olhos da sociedade, mas em compensação nós mesmas nos dávamos mais valor.
Como não podia ser diferente, a dama do castelo se emocionou ao lembrar dos tempos em que ali viveu:
– Hoje o castelinho me parece mais claro, com um ambiente mais leve. No meu tempo, os móveis eram tão escuros, era tudo tão pesado...
Mas, enquanto subia e descia as escadas com uma energia surpreendente e retribuía com atenção o carinho e a curiosidade dos artistas e de seus convidados – que fizeram festa para recebê-la e a cercaram para ouvi-la –, Nilza procurou se manter sorridente.
– O que passou, passou. Não posso ter mágoa do que já ficou para trás. E, afinal de contas, a vida é tão en graçada, né? Tudo o que acontece com a gente, olhando com uma boa distância, parece tão cômico...
Lenda urbana
A história de Nilza Linck está no livro A Prisioneira do Cas telinho do Alto da Bronze (Artes & Ofícios, 1993), que o jornalista Juremir Machado da Silva escreveu a partir de depoimentos da própria prisioneira: Carlos Eurico Gomes, 40 anos, abandonou a primeira mulher (Ruth Caldas) e suas três filhas para viver no castelo que construiria, em pleno Centro de Porto Alegre, com Nilza, 18 anos, e seu filho pequeno. Apaixonado por edificações medievais erguidas em pedra, o homem concebeu o prédio do Alto da Bronze depois de pesquisar os castelos de séculos passados. O amor, no entanto, durou pouco: depois de quatro anos de convivência (de 1948 a 1952), cansada dos ciúmes de Carlos Eurico, Nilza resolveu deixá-lo. Inicialmente o castelinho ficou para ele e sua nova esposa, Nélida. Mas em seguida acabou vendido – e transformado em, entre outras coisas, uma boate. Nilza ainda teria outros dois relacionamentos. Além do primeiro filho, adotou uma menina, Fátima, com quem mora hoje.