Junho/2008 | Foto: Cristiano Estrela Em 1966, na formatura do magistério | Arquivo Pessoal :: No sorriso da irmã MARIA DO CARMO, imigrantes encontraram conforto e cidadania
Por Fernando Corrêa, especial
Certa vez, a então desembargadora Maria Berenice Dias adentrou o tribunal com uma echarpe colorida para fora da toga. Foi repreendida pelo presidente: os colegas reclamavam que ela estava descaracterizando o traje.
– Eu respondi: “Não, a toga não é mais a mesma desde que uma mulher entrou dentro dela”.
Pode-se dizer que a sociedade brasileira também não é mais a mesma desde que a magistrada de 68 anos se tornou a primeira juíza na história do Rio Grande do Sul, em 1973, a contragosto de uma comissão que fazia o possível para impedir mulheres de sequer efetuarem a inscrição no concurso. Chegar lá foi só o início de uma trajetória que desafiou incansavelmente o machismo e a discriminação, tendo Berenice como uma juíza sensível à realidade das minorias, sem medo de cara feia e dada a pioneirismos.
Em 1996, meia década após ser promovida a juíza do Tribunal de Alçada, tornou-se a primeira mulher desembargadora no Tribunal de Justiça do RS. Quatro anos mais tarde, lançou o primeiro livro sobre Direito Homoafetivo, pouco antes de o tribunal que ela integrava fazer um reconhecimento – então inédito no país – de união estável entre dois homens. Em 2011, como advogada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), sustentou a constitucionalidade das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo diante de um Supremo Tribunal Federal que acabou reconhecendo as uniões e dando um dos passos mais significativos para casais homoafetivos, estendendo a eles o status de família.
Berenice é uma mulher duplamente inspiradora. Inspira pela coragem e obstinação da jovem nascida em Santiago que abriu para as mulheres as portas do Judiciário no Estado. E inspira porque fez da vida e da profissão – em mais de três décadas de magistratura e hoje como advogada – um instrumento na busca por igualdade e dignidade para as mulheres e a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais), esforço que lhe garantiu a alcunha de “juíza dos afetos”.
– Meu livro já se referia à família no plural: Manual de Direito das Famílias – lembra a autora de mais de duas dezenas de livros sobre temas como aborto, alienação parental e Lei Maria da Penha. – Antes só existia a família do casamento. Foi a Constituição de 1988 que disse que não, que família também é união estável. Então vi que já havia mais de uma família. Se não é o casamento, se não é a procriação, se não é o sexo, tem família sem casamento, família sem sexo, qual o elemento identificador? É o vínculo de afetividade, a frase do Antoine de Saint-Exupéry, a responsabilidade decorrente do afeto. O afeto é uma relação que merece a tutela jurídica – afirma, repetindo um dos lemas que guiam sua atuação.
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Em paredes e prateleiras no seu lar, no bairro Farroupilha, dezenas de diplomas e certificados disputam espaço com capas de revista, uma espécie de biografia profissional ilustrada. A atuação progressista despertou o interesse dos veículos de comunicação e fez da magistrada uma referência para colegas de toga que se viam diante de casos na seara do Direito de Família ou envolvendo homossexuais:
– Às vezes algum juiz ligava preocupado: “Berenice, tenho de recolher um menor infrator, mas ele parece uma menina, o que eu faço?”. E eu orientava: “Bota no abrigo das meninas ou ele vai ser estuprado diariamente” – exemplifica.
Diante da escassez de informações sobre os direitos da população LGBT, criou sites reunindo jurisprudência e notícias ligadas ao Direito de família e homoafetivo, na esperança de garantir visibilidade à causa e encorajar advogados e vítimas de discriminação a recorrerem à Justiça.
– Temos de reconhecer o protagonismo do Poder Judiciário (na conquista de direitos homoafetivos). Podem chamar de ativismo judicial, mas pelo menos as coisas acontecem – argumenta, rememorando algumas conquistas garantidas a partir da jurisprudência produzida por decisões como as que tomou enquanto magistrada. – Primeiro, o CNJ obrigou que se aceitasse o casamento homoafetivo (em 2013). Agora, determinou que se permita o registro de filhos de casais homoafetivos no momento do nascimento. O ideal era que houvesse leis nesse sentido, mas como não há...
Como não há, Berenice faz o que está ao seu alcance. No dia em que pegou sua carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2008, deu entrada no requerimento para a criação da primeira Comissão de Diversidade Sexual. Já estava com o escritório montado para dar início à atuação não mais no papel de julgadora, mas ao lado dos julgados.
– Comecei a perceber que não adiantava eu estar ali querendo julgar, querendo dar direito, querendo trocar nome de transsexual, se não tem processo. As pessoas acham que não têm direito, os advogados não sabem entrar com ação, não querem pegar os casos, acham que vão virar homossexuais – ironiza.
Berenice leva na boa a curiosidade sobre sua sexualidade e as insinuações que ouve com frequência:
– Não me incomodo. Pergunto: “Por quê? Tu estás a fim de mim? Se tu estiver e eu estiver, a gente conversa” – diverte-se ela, que já foi casada por cinco vezes (sim, todas com homens).
Atualmente, a Comissão de Diversidade Sexual ligada ao Conselho Federal da OAB tenta coletar assinaturas da iniciativa popular para protocolar o anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual que, entre outras coisas, passaria a criminalizar a homofobia. Mas, cinco anos após a conclusão do texto, falta mais de 1 milhão de assinaturas. Depender do congresso conservador para levar o texto adiante é inviável.
– Posso dar para o (deputado) Jean Wyllys (PSOL-RJ) apresentar, mas vai morrer na praia – lamenta, em um lapso de resignação que destoa do discurso empoderador.
Progressiva de nascença
– A Berenice é uma pessoa obstinada, extremamente focada, com um grau de perfeccionismo gigante, e uma pessoa muito idealista – resume a advogada Marta Cauduro Oppermann, sócia de Berenice e Ana Paula Neu Rechden no escritório que as três mantêm desde 2008, no Moinhos de Vento. – No tribunal, ela dava decisões contrárias a todos os entendimentos, e alguns advogados falavam: “Lá vem a Berenice com esses entendimentos malucos”. Dois anos depois, aquele entendimento era a nova realidade em Direito de Familia. Só uma pessoa com esse nível de idealismo é capaz de fazer acontecer – opina.
Não sabendo que era impossível, foi lá e fez. A apropriação torta da frase do poeta francês Jean Cocteau (um bissexual e crítico da homofobia em pleno início do século 20) serve para descrever a trajetória de Berenice.
– Nos meus primeiros anos de magistratura, em Ibirubá, surgiu um homem que deixou a mulher e foi para o Norte. A mulher, lavadeira, criou cinco filhos e construiu uma casinha. Depois de 20 anos, ele veio querendo metade da casinha, e todo mundo achava que ele tinha direito! Tive um ataque. Construí essa coisa que vingou, se consolidou – diz, sem falsa modéstia.
A “coisa” foi o reconhecimento da separação no momento em que o casal não mora mais junto, um avanço para um Brasil que sequer legalizara o divórcio. A jovem juíza ia descobrindo, na prática, que as leis discriminavam a mulher, mas que a interpretação atenta e lúcida do ordenamento jurídico poderia desfazer algumas injustiças.
– O homem podia pedir a separação se a mulher não fosse virgem, ficava com a guarda dos filhos se a mulher fosse culpada da separação, e a culpa sempre sobrava pra mulher. Os relacionamentos extramatrimoniais não tinham direito algum, e quem não tinha direito era a mulher, porque o patrimônio ficava no nome do homem. Comecei a construir uma interpretação da lei mais atenta a essas questões.
Não que ela já não tivesse tomado consciência do machismo: para conseguir fazer a prova da magistratura, dependeu do voto de minerva do presidente de uma comissão que historicamente recusava inscrições de mulheres sem justificativa. Via o primeiro marido (pai de seus três filhos, César, Suzana e Denise), também juiz, ser promovido por merecimento, enquanto ela tinha de esperar a hora de ser promovida por antiguidade. Quando deu à luz o primogênito, nada de licença-maternidade: apenas 30 dias como licença-saúde.
– Me doeu muito, mas me resignei. Hoje faria um escarcéu – garante.
No escritório na Capital, a sala de atendimento tem amplas janelas pelas quais se vê a copa das árvores no Parcão, “nosso jardim”, como brinca. Maria Berenice e a sócia Marta explicam que a ideia foi criar um ambiente familiar para os clientes que, frequentemente, chegam fragilizados.
– Parece sala de psicólogo, tanto que, na primeira vez que vim aqui, chorei – conta à reportagem de Donna uma cliente em vias de ser atendida.
A equipe de advogados que trabalha ali estudou na graduação a doutrina da desembargadora. A maior parte se formou em uma realidade “pós-Maria Berenice Dias”, em que os direitos LGBT já eram abordados e em que o termo “homoafetividade”, cunhado por Berenice no livro União homossexual: o preconceito e a justiça (2000), já havia sido assimilado e incluído em dicionários, como documento de uma nova realidade que veio para ficar.
Nesta nova realidade, em que homossexuais podem casar e não precisam mais recorrer a advogados para garantir o registro do nome dos filhos ou para acessar técnicas de reprodução assistida, mesmo o foco de atuação do escritório, antes focado em Direito Homoafetivo, acabou ampliado. Ainda há muito a avançar – mas para Berenice, já é tempo de falar em vitórias.
– Sempre achei que minha grande vitória havia sido fundar o JusMulher (em 1995), serviço de atendimento às vítimas de violência. Depois passei a achar que tinha sido a criação do IBDFam, em 1997. Mas, agora, estou convencida de que foi resgatar um segmento da população e dar um pouco de visibilidade. Os homossexuais nunca tiveram voz, sempre foram ridicularizados. Então vou indo, de sonho em sonho – conclui.
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Vídeo | Defensora dos direitos homoafetivos e da família, a jurista Maria Berenice Dias fala sobre os preconceitos pelos quais passou e os motivos que a levaram a defender causas sociais. Entrevista a Zero Hora em novembro de 2013: