Há muitas vantagens no fato de uma das suas melhores amigas ter idade para ser sua mãe. A mais evidente (e egoísta) é que sua amiga mais velha, sem ser sua mãe, sabe muito sobre quase tudo que realmente importa amor, amizade, família, trabalho. Como alguém que percorreu o mundo lhe traria lembranças de um mercado em Istambul ou de um museu em Viena, quem viu e viveu muito recolhe da experiência acumulada os suvenires de uma trajetória longa e vivida intensamente.
Como eu, minha amiga Alice Urbim também conheceu a então apresentadora de TV no início da carreira e deixou-se permear por um certo estilo Celia na hora de dizer o que precisa ser dito da forma mais direta e franca possível. Somos, eu e a Alice, "irmãs em Celia", por assim dizer: ela a irmã mais velha da TV, eu a irmã caçula do jornal, as duas igualmente depuradas e influenciadas por ela.
Quando Alice se casou, Celia estava lá, ajudando nos preparativos e dividindo a alegria meio hippie do jovem casal Urbim. Quando eu me separei, anos atrás, Celia ficou do meu lado, não apenas oferecendo ombro e consolo, o que todas as amigas fazem, mas me dando o conselho mais simples e sábio de todos: "Seja a melhor versão possível de ti mesma". (Quem já se separou sabe que esse conselho pode ser mesmo sábio, mas está longe de ser simples.) Quando conheci meu segundo marido, foi ela quem deu o veredicto decisivo: "Gostei dele". Celia é o tipo de amiga que oferece apoio antes mesmo que você perceba que está precisando.
Quando fiquei sabendo que nossa amiga estava planejando se aposentar, há algumas semanas, mandei uma mensagem apreensiva para Alice no Facebook. Precisávamos entrar em campo para entender o que estava acontecendo. Era um desânimo passageiro? Uma decisão calculada? Algo a estava incomodando?
Não deveria causar espanto que alguém que começou a trabalhar como jornalista aos 26 anos, escrevendo críticas de teatro no jornal A Hora, chegasse à conclusão de que havia chegado o momento de encerrar um ciclo de 60 anos ininterruptos de militância jornalística. Ainda assim, a decisão nos surpreendeu. Celia é daquelas pessoas que sempre viveu o trabalho com intensidade e empolgação incomuns. Adaptava-se a todas as mudanças, às tecnologias que se sucediam, aos novos chefes, a novas funções ou desafios, tudo com uma serenidade nem sempre exibida por colegas de profissão mais jovens. Foi um exemplo de jornalista versátil - "multimídia", diria-se hoje em dia. Passou pelas rádios Guaíba e Gaúcha, pelas revistas do Globo e Cláudia, pelas TVs Piratini e Gaúcha. Na Zero Hora, onde começou a trabalhar em 1970, foi repórter, editora, colunista e até blogueira.
Era tão difícil imaginar que a Celia pudesse parar de escrever sua coluna na revista Donna quanto teria sido convencê-la, alguns meses antes, a abrir mão do carro, seu companheiro inseparável - objeto-símbolo da independência que ela conquistou sozinha muito antes de as mulheres transformarem a liberdade em causa coletiva. Em dezembro, porém, quando chegava para uma consulta médica no bairro Três Figueiras, Celia foi rendida por dois assaltantes. Os ladrões não a machucaram, mas levaram seu carro e a bolsa com todos os documentos. Acatando a sugestão dos sobrinhos, decidiu parar de dirigir - e talvez ali a ideia de fechamento de um ciclo tenha começado a se tornar inevitável.
Alguns dias depois, estávamos, eu e a Alice, no apartamento da Celia, em frente à Praça da Encol, com a missão de ouvi-la para uma reportagem de despedida na revista Donna. A ideia era conversar, entre outras coisas, sobre como ela estava se sentindo com a aposentadoria - um pouco para contar para seus leitores, outro pouco para que nós mesmas pudéssemos nos acostumar com a ideia.
Quando chegamos, a anfitriã já estava impecável nos aguardando na porta. Blusa branca de seda, perfeita para o calor de fevereiro, maquiagem discreta, mas perceptível, cabelo arrumado. Celia havia acabado de passar por uma sessão de fotos com o fotógrafo Júlio Cordeiro e nos esperava com o "chá das cinco" já encaminhado. (O suco gelado, em substituição à bebida quente, ilustrava, na prática, o que a anfitriã sempre ensinou em suas colunas de etiqueta e boas maneiras: nunca abra mão do bom senso e saiba adaptar a tradição às circunstâncias.)
O apartamento onde Celia mora sozinha desde a morte do marido, o jornalista Lauro Schirmer, em 2009, tem uma decoração sóbria, mas acolhedora. O casal não teve filhos, mas Celia sempre teve um convívio familiar intenso com os quatro sobrinhos e as netas emprestadas, que costuma receber em casa com frequência.
No centro da sala de visitas, sobre a lareira, um imponente retrato pintado pelo artista João Fahrion (1898 -1970), quando Celia tinha 25 anos, é um dos sinais de que a dona da casa - Krieger pelo lado da mãe, Pinto Ribeiro pelo lado do pai - vem de uma família "de posses", como se dizia naquela época.
Perguntamos a Celia como a moça glamourosa do retrato, que cresceu em uma casa confortável na Fernandes Vieira, aprendendo trabalhos manuais e se preparando para casar, conseguiu contrariar quase todas as expectativas depositadas sobre a filha de uma família tradicional de Porto Alegre. A saber: fazer teatro, morar sozinha, trabalhar em uma Redação e namorar um homem desquitado com quem o casamento só foi possível no Uruguai. No início dos anos 1960, nada disso era comum.
— Se não fosse a psicanálise eu não seria nada, não teria aguentado. Dos 25 aos 35 anos, fiz análise com o doutor Celestino Prunes. Foi doloroso, mas me trouxe muito autoconhecimento e me ajudou a entender como é importante se colocar no lugar dos outros. E isso, no fim das contas, é a essência da etiqueta e das boas maneiras: colocar-se no lugar dos outros. A análise e o exercício do jornalismo me ajudaram a entender melhor as pessoas e a mim mesma.
E muito cedo ela sentiu coisas que não conseguia entender. Celia perdeu o pai aos 11 anos e associa esse contato precoce com a morte a um certo pessimismo que, acredita, sempre a acompanhou - e que nem a psicanálise conseguiu curar.
— Sempre penso que tudo pode dar errado, para não ser surpreendida.
O irmão mais velho, Roberto Pinto Ribeiro, médico como o pai, foi uma figura central em sua formação. Foi ele quem a apresentou a escritores como Thomas Mann, um dos seus preferidos, e a filósofos como Jean-Paul Sartre, muito na moda nos anos 1950. Roberto foi também quem sugeriu que a irmã se analisasse e permaneceu ao seu lado quando ela começou a se afastar do script das moças convencionais - mais acentuadamente depois do fim de um noivado.
A convivência com a "turma do teatro" que conheceu na faculdade - e que incluía, entre outros, Paulo José, Paulo César Peréio, Lílian Lemmertz, Ítala Nandi, Mário de Almeida, Fernando Peixoto, Lineu Dias, Luís Carlos Maciel e Ivete Brandalise - descortinou para a jovem estudante de Filosofia da UFRGS um ambiente de desafio às convenções que ela nem sabia que existia e que a deixou curiosa e fascinada ao mesmo tempo.
Com o grupo Clube de Teatro, chegou a participar como atriz da peça Nossa Cidade, de Thorton Wilder - o que lhe deu coragem para oferecer ao jornal A Hora seus primeiros textos sobre teatro e a ajudou a descobrir a verdadeira vocação. Celia ainda não desconfiava, mas esse mundo de liberdade que tanto a fascinou, em que separações eram normais e amigos gays não precisavam se esconder, em breve seria a norma:
— Em todos esses anos que vivi, o que mais mudou foi o preconceito. Até os anos 1940, tudo era feio, tudo era proibido, tudo era escondido. Hoje é muito mais fácil que se respeite a individualidade das pessoas. Foi um grande avanço — aponta.
A paixão proibida, recíproca, que começou quando ela e Lauro Schirmer trabalhavam no jornal A Hora, no final dos anos 1950, testou sua capacidade para enfrentar alguns desses preconceitos.
— Nunca me senti rejeitada pela sociedade. Apenas evitava a convivência de quem não aceitava o meu estilo de vida. Meu maior problema era a culpa em relação à minha mãe. Mesmo depois de casada, ainda lamentava não ter correspondido ao que ela esperava de mim.
Essa sensibilidade ao olhar dos outros refletiu-se, de certa forma, na maneira como Celia construiu sua relação com seu público. Mesmo quando falava sobre elegância ou boas maneiras à mesa, procurava evitar uma linguagem arrogante, impositiva.
— Nunca gostei de dizer "assim é certo, assim é errado". O importante é apontar exemplos, mostrar como tal coisa cai bem em tal situação. Cabe a cada um escolher os modelos com que prefere se identificar.
Por não se sentir à vontade no papel de oráculo das boas maneiras em que acabou sendo colocada, sempre preferiu escrever sobre moda do que sobre etiqueta - ironicamente, o assunto da maioria dos seus livros e que a tornou conhecida também fora do Estado. Celia tem o que se chama de "cultura de moda", um tipo de conhecimento que vai além das tendências e dos lançamentos. Em um desfile ou assistindo à cerimônia do Oscar, é capaz de reconhecer influências, materiais, originalidade, imitação. (Uma foto, do início dos anos 1980, em que a atriz Audrey Hepburn e o estilista Givenchy passeiam à beira do Sena, ele de terno e gravata, ela com um básico trenchcoat amarrado na cintura, é a referência imediata que lhe ocorre quando pensa em elegância atemporal.)
— Elegância é dar mais importância ao que cai bem do que aos ditames da moda. Infelizmente, muita gente acaba usando roupas ou acessórios que não favorecem para aparentar menos idade. Elegância é também ser educado, socialmente agradável, mesmo sendo tímido, como é o caso do Luis Fernando Verissimo. Já a maior deselegância possível é a ostentação. Não existe nada mais deselegante do que ser deslumbrado.
Durante os muitos anos em que fez análise, Celia chegou a uma formulação que sintetiza um tipo de sabedoria da qual ela lança mão com frequência - seja para definir o que é elegância, seja para explicar como se sente ao encerrar o fim de um ciclo em sua vida profissional. Segundo essa formulação, tudo é uma questão de buscar a harmonia entre vida interior e circunstâncias.
— É tudo texto e contexto. O texto é o que você é por dentro, sua individualidade, seu ego, suas caraminholas pessoais. O contexto é como você se coloca no mundo, como se adapta às mudanças e aos obstáculos. O tempo obviamente faz parte do contexto, e adaptar-se às mudanças que ele impõe é um tipo de sabedoria. Negar a passagem do tempo é impossível, então é preciso agir de acordo.
Celia chegou à conclusão de que o contexto indica que está na hora de parar de colaborar regularmente com o jornal, mas não de escrever ou de continuar se engajando em projetos que a apaixonem - trabalho e afeto, para ela, sempre caminharam juntos. Tem planos de transformar textos sobre histórias da família no embrião, talvez, do seu próximo livro.
Acostumar-se a viver sem carro, parece, vai ser um pouco mais difícil, mas não impossível.
— Eu me adapto. Sou boa nisso.
A gente concorda, Celia, e como sempre, estamos de olho em ti. Para aprender.
* Colaborou Alice Urbim
Nos bastidores da TV
A gerente de programação da RBS TV Alice Urbim acompanhou parte da trajetória de Celia Ribeiro na televisão e coleciona boas histórias de bastidores e amizade:
Os flocos de isopor
"Era inauguração da TV Rio Grande, no ano de 1977. Waldir, um artista visual contemporâneo e cenógrafo visionário, trabalhava no quadro de variedades do Jornal do Almoço. Fazia frio naquele dia em Rio Grande, e como ele tinha ideias naturalistas não teve dúvidas: colocou, nas gambiarras de luz, sacos com flocos de isopor que arrebentariam na hora em que a Celia falasse da inauguração da TV. Mesmo que eu fosse coordenadora do programa, ele não me revelava várias genialidades para sermos surpreendidos na hora H. Pois é... Com toda elegância, Celia leu o texto nas famosas fichas amarelas (não havia teleprompter), e os flocos foram caindo no cenário e no cabelo bem armado com laquê. Conseguem imaginar? A Celia, impávida, como se os flocos de isopor não pertencessem àquele momento. Quando terminou o programa, imaginei o que ia ouvir dela e o que diria para o cenógrafo. Com cara de espanto, abri a porta da sala, e ela olhou bem pra mim e disse: 'Alice, sou uma mulher de teatro! Parabéns, Waldir!'."
O dia em que deixei de fazer touca
"No início dos anos 1970, eu fazia touca no cabelo para ficar liso. Tinha cabelos castanhos completamente crespos e não era moda. Cheguei a ter aplique de cabelos lisos que eram usados embaixo de faixas de seda. Fazia alisamento também. Os sábados à tarde da minha adolescência madura eram perdidos no salão de beleza da Leontina.
Fui adotada pela Celia como filha na produção do Jornal do Almoço. Um dia, ela olhou para mim com aquele jeito incisivo, sem papas na língua, e supersincera (acho que herdei dela esse jeitão): ‘Tu tens que deixar o teu cabelo crespo! Tu estás estragando o teu cabelo. Vou te levar no salão do Plaza São Rafael onde tem uma cabeleireira que vai cuidar de ti’. Marcou hora e me levou até lá de carro. Como eu tinha confiança absoluta nela, sentei na cadeira e esperei. Ela ficou do meu lado o tempo todo. Para mim, foi quase uma cirurgia. Quando acordei da recuperação, estava toda crespinha. Me assustei um pouco, mas comecei a me acostumar.
No meu casamento, em 1976, os cabelos eram crespos, com flores."
O que os amigos dizem sobre Celia
"A Celia foi uma ótima jornalista e é uma pessoa com gosto pela vida, pela amizade e pela beleza. Quer dizer, ela nos ensinou muito mais do que boas maneiras."
Luis Fernando Verissimo, escritor
"Celia é minha grande mestra. Foi ela quem me convidou para fazer TV, lá em 1972. Jornal do Almoço foi o meu primeiro trabalho em TV. Culpa dela. Celia é uma mulher sensível, de absoluto bom gosto e generosidade. Talentosa e ligada no mundo. Meu grande exemplo de ser humano. Pioneira em tudo o que há de mais moderno.
Tânia Carvalho, jornalista
"A Celia está conosco desde sempre. Foi uma das pioneiras na TV, e escreveu uma linda história no jornalismo gaúcho, ao lado do nosso querido Lauro Schirmer. Temos o maior respeito pela sua trajetória, que se confunde com a história da nossa empresa. É uma grande profissional, uma mulher realmente inspiradora, uma dama, por quem temos um carinho imenso."
Nelson Sirotsky, membro do Conselho de Administração do Grupo RBS
"A Celia teve faro jornalístico para perceber que havia uma geração filha da informalidade dos anos 1970 e 1980, e que de repente precisava de alguma referência para um almoço com o chefe, para receber amigos em casa, etc. Por isso o livro Etiqueta na Prática foi um fenômeno, vendeu mais de 100 mil exemplares. A Celia tirou a frescura da etiqueta. Transformou algo que servia para diferenciar classes em algo para difundir regras para um bom convívio.
Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM
"A Celia é um minidicionário de boas maneiras a que todos consultamos. Há 'por quês' e 'para quês' que só ela tem crédito para dizer a resposta. E se ela diz, está resolvido: as respostas são definitivas. Os milhares de leitores vão sentir falta das soluções dela. Sorte de nós, amigos, que ainda vamos poder consultá-la.
Ruy Spohr, estilista