O táxi sintonizava uma estação de rádio religiosa. Duas locutoras falavam sobre a importância de as mulheres serem submissas, a fim de atenderem aos desígnios de Deus. O poeta Antonio Cicero recém havia cometido eutanásia e eu, sentada no banco de trás, pensava: de que adianta defender o livre arbítrio em um país tão condenado ao servilismo? Preferimos receber ordens em vez de nos responsabilizarmos pelos nossos atos. Entregamos para a Igreja e o Estado a decisão de como devemos viver e morrer. Renunciamos à autonomia do nosso corpo e mente.
Não é a primeira vez que escrevo sobre eutanásia, mas o assunto voltou ao debate, inspirado pelo poeta e pelo novo filme de Almodóvar. A morte com data marcada pode ser uma bênção. A pessoa fez os outros felizes, contribuiu de alguma forma para a sociedade e, durante o inventário de suas perdas e ganhos, resolve que é hora de partir, sem esticar seu suplício. Nem simples, nem fácil, mas uma escolha legítima.
Claro que não se pode banalizar o assunto e aceitar que adolescentes deprimidos façam o mesmo: a decisão tem que estar lincada a um diagnóstico de doença terminal, sem chance nenhuma de recuperação. Jovens: vivam, sofram e avancem. O tema aqui são os casos irreversíveis, quando só há duas opções: aguentar o total declínio físico e mental, esfacelando a si e à família, ou acelerar o fim de forma dramática e chocante.
A terceira opção seria apagar serenamente, ao lado de um médico e dos afetos mais íntimos, vivenciando a morte com a mesma elegância com que se viveu a vida. Mas não. Fizeram a gente acreditar que a dor enaltece a existência, como se sofrer fosse não apenas normal, mas obrigatório. De fato, a dor nos amadurece, mas não é preciso penar para dar sentido à vida.
O portador de uma doença incurável e debilitante, quando cogita o suicídio, é porque chegou a um grau elevado de consciência, entendeu que depois de uma vida bem usufruída, a morte deixa de ser inimiga para se transformar em aliada.
A doença já impedia Antonio Cicero de desfrutar seus prazeres cotidianos. Usou, então, o resto de sua lucidez para tomar uma decisão extrema, assim como nós também decidimos nossas pequenas mortes: divórcios, demissões, emigrações. Encerramos etapas em vida, em troca de outros desafios. Ele optou pelo encerramento absoluto, em troca de nada.
O impacto é bem maior, mas ainda compreensível. Essa crônica não é um empurrão para as trevas, mas para a luz. Um dia, talvez, o país acolha a ideia de uma saída digna diante dos desafios radicais da velhice e desmistifique a morte como vilã. Ela não é vista da mesma maneira por todos, então não sejamos arrogantes diante da escolha de alguém que passa por uma angústia intolerável. Se a vida de cada um merece respeito, a morte de cada um, naturalmente, também.