Sempre fui encantada por Marília Gabriela, o que já declarei em crônicas passadas. Gabi é bivolt. Feminina e masculina, forte e frágil, pública e reservada, uma jornalista consagrada que, a essa altura, poderia dedicar-se apenas a ver a vida passar pela janela, mas continua, como mulher fora dos padrões que é, a se expor ao incerto. Com isso, acumula novos fãs e renova a admiração de quem já estava no papo, como eu.
Era noite de sexta em São Paulo e a plateia inteira roía as unhas, suponho que todos mais nervosos que ela. Então soou o terceiro sinal e deu-se o início da peça A Última Entrevista de Marília Gabriela, em que ela contracena com o próprio filho, o talentoso Theodoro Cochrane, num retorno ao palco, ao estúdio e ao divã, tudo ao mesmo tempo, que é assim que as pessoas múltiplas enfrentam a vida. Num debate íntimo e universal (sei que abuso das ambivalências, mas este texto fala de Marília Gabriela, que jeito), cada um deles interpreta a si mesmo e interpreta o outro, num jogo de espelhos que trinca, naturalmente. É difícil refletir sobre tantas verdades e tantos silêncios.
As relações entre mães e filhos fazem parte de uma construção social que elevou o “instinto maternal” à categoria de divindade. Resultado: o mundo tem hoje um excedente de mães culpadas e de filhos carentes. De mães que precisam aprender a se perdoar e de filhos que precisam parar de torturá-las. Nos dois lados do ringue sobram feridas abertas, dores represadas. O tão aclamado amor incondicional, que de fato existe, acaba inflamado pelo fato de que nem mães, nem filhos são celestiais. Há que se resgatar a humanidade entre eles, antes que sucumbam à idealização perversa que começa no instante em que uma mulher engravida.
A peça, com texto de Michelle Ferreira (baseado em depoimentos dos próprios atores) e direção de Bruno Guida, mostra o lado oculto deste elo. Para nosso alívio, a montagem consegue injetar suavidade e bom humor em meio ao que é bruto e intenso (as ambivalências, de novo). Nem poderia ser diferente, pois no âmago de tudo, está o querer bem. Se não houvesse o desejo do encontro pleno, por que nos entregaríamos às emoções dessa forma?
Marília está com 77 anos e o cabelo ótimo. Não leva uma vida perfeita, e sim a vida que quer: um ato de validação pessoal e de exemplo aos que não se atrevem a tanto. Theodoro não precisa provar nada a ninguém, é um ator corajoso e carismático. Teatro é para audiências pequenas, não é televisão, por isso reverbero aqui essa contribuição que a dramaturgia está nos oferecendo, na torcida para que o assunto se esparrame pelos almoços em família, em vez de ficar confinado apenas aos consultórios psiquiátricos. Que a alta venha para todos.