Não costumo espiar o que tem dentro das panelas. Invejo quem sabe cozinhar, mas a fome que me inspira é outra: gosto, isso sim, de abrir a tampa que encobre a alma de pessoas interessantes e descobrir o que fumega lá no fundo. Anthony Bourdain, por exemplo. Nunca provei seus filés, mas devorei seus livros biográficos e agora a refeição ficou completa: um documentário sobre sua trajetória está disponível na Netflix.
Era mais um chef badalado de Nova York (nem tão bom, segundo ele próprio) quando resolveu lançar um livro revelando os bastidores dos restaurantes da cidade (cozinhas abertas são vitrines de charme: continuamos sem saber há quantos meses – ou anos – os mantimentos estão estocados). O voyeurismo transformou Cozinha Confidencial em best-seller, e o texto honesto e endiabrado de Bourdain ajudou: ao servir um prato indigesto, ele usou literatura fresca, iguaria de primeira. Acabou virando astro de TV: por muitos anos, apresentou um programa em que viajava pelo mundo a fim de provar comidas e experiências exóticas. Nunca mais pisou em um restaurante – não no dele, ao menos.
De chef local para fenômeno da mídia. Cerca de 250 dias por ano fora de casa. Em tese, a não rotina dos sonhos: um dia no Vietnã, outro na Provence, sendo muito bem pago para comer, beber e realizar suas fantasias em lugares longínquos. “Era como viajar com uma banda, numa turnê internacional permanente”, escreveu ele. Nada disso impediu um fim trágico.
Há quem acredite que pular de galho em galho, seja no amor ou no mapa-múndi, garante a liderança no ranking de aproveitamento da vida – bem diferente de casar-se, ter filhos e passar as férias no sítio. A boa e má notícia: esse ranking não existe, toda escolha nos restringe. Ninguém se contenta 100% com seu aqui e agora, estamos sempre de olho na outra margem do rio. Bourdain, portador de asas que o levaram longe, chegou a revelar que seu pico de felicidade era assar um churrasco no quintal para a filhinha: óbvio, era quando ele fazia turismo pela vida familiar.
Enquanto isso, as andanças sem pausa pelos cinco continentes o estavam confinando em neuras e solidão. Até que se enclausurou em um amor doentio por uma jovem atriz, e uma depressão severa cortou definitivamente suas asas. Já havia circulado para fora e para dentro de todos os cárceres que a vida oferece, experimentado a beleza e o caos que há em tudo (partir, ficar), e surpreendeu o mundo com seu último e radical ato de arrojo, o suicídio.
O documentário termina com um poema de Jack Gilbert. “Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía/chegava apenas ao final do seu triunfo”. Nada como ter poesia no cardápio. Só ela consegue tornar palatável a crueza das nossas dores.