Não lembro quem me disse, se foi um ex-namorado, se foi uma astróloga, se foi minha mãe (vai ver ninguém me disse, deduzi sozinha): “Você é um tango argentino”. Naturalmente, a frase estava relacionada ao meu jeito de lidar com as emoções.
Elogio ou crítica? Acho que era uma crítica travestida de elogio. Alguém estava dizendo que eu era exagerada, dramática, densa – mas antes do que ser uma songamonga, concorda? Um tango é um tango. Inolvidable.
Não faz muito tempo, estive em Buenos Aires e assisti a dois espetáculos de tango: um mais tradicional, com bailarinos formidáveis e números de tirar o fôlego (Rojo Tango, no hotel Faena) e outro mais alternativo, um grupo musical (Orquestra Fernandez Fierro), composto por 12 tipos com pinta de roqueiros bárbaros, neanderthais manejando violinos e bandoneons ao lado de uma jovem intérprete que cantava com o nervo exposto, todos eles fazendo do tango não apenas uma declaração sofrida de amor, mas uma reivindicação social de uma amplitude quase presunçosa – o tango como expressão máxima do que nos transforma em fêmeas e machos, do que nos altera, nos encoraja, nos arrebata.
O tango não só como manifestação sexual, mas também de cidadania, o tango como propulsor de uma mudança urgente que inicia na corrente sanguínea e acaba sei lá onde, acho que simplesmente não acaba: um tango puxa o outro.
Estava eu ali, sentada no escuro, em uma sala aconchegante e sofisticada no primeiro espetáculo, regada a vinho de muitos pesos, e em outra noite numa sala improvisada, sem ar condicionado numa noite fria, um muquifo com vinho barato e atmosfera perfeita para receber os aventureiros que transformam o mundo. Em cada um daqueles ambientes antagônicos, o tango seduzia, injetava sensualidade, dramaticidade, o inevitável chamamento ao coração. Como se dissesse: ei, você aí, não é hora de pensar. Sinta! Com força, hombre.
Em cada um daqueles ambientes antagônicos, o tango seduzia, injetava sensualidade, dramaticidade, o inevitável chamamento ao coração. Como se dissesse: ei, você aí, não é hora de pensar. Sinta! Com força, hombre.
“Você é um tango argentino”, lembrei. E concordei, em silêncio. Mas será que ainda sou um tango?
Já chorei, acertei o passo, errei o passo, me iludi, me frustrei, insisti, fiz besteira, já dancei o que tinha que dançar – e fui o par perfeito para outros preencherem suas biografias com suor e lágrimas também. Somos todos amadores. Os que amam.
Hoje o tango não representa mais o que sou. Drama combina com palco, não mais com minha vida emocional. Adiós, tango. Passadas mais leves, rostos menos tensos, menos sangue, mais jinga, mais bossa, mais molecagem, mais sacanagem, mais hoje, menos eternidade. O vestido vermelho, o salto alto e o carão podem até ser usados numa mise-en-scéne, mas não durante o jantar de uma segunda-feira. Agora não saio mais da plateia. Prefiro ficar de mãos dadas com a paz, admirando os intensos protagonistas do tango a uma distância segura.