Outro dia uma pessoa me perguntou: você vampiriza as pessoas que conhece para escrever seus textos?
Vampirizar é um verbo ao mesmo tempo charmoso, por invocar algo cinematográfico, e nefasto, pelo seu potencial destruidor. Não me soou bem, parecia que eu era um personagem de filme noir, uma maquiavélica toda vestida de preto, sedutora, disposta a arrancar o sangue dos meus interlocutores e devolvê-los à rua feito zumbis, ocos por dentro.
Disse a ela: claro que tudo que escuto aqui ou ali me serve de inspiração, a vida é minha matéria-prima, e não vivo isolada, minhas emoções são provocadas por gente com quem me relaciono e elas acabam incluídas no meu repertório criativo, mas...
Ah, o mas. Mas não exponho ninguém de forma maldosa, narro as situações com alguns acréscimos fictícios, não entrego nomes nem detalhes identificáveis – respeito a discrição alheia, e a minha, inclusive.
A não ser que seja um elogio público, aí quem não gosta de ser citado?
Lembro uma entrevista de uma importante compositora e cantora. O entrevistador perguntou se ela já havia transado com alguém só para extrair da transa uma música. Ela respondeu que não, mas que era inevitável que as coisas se misturassem, e contou que certa vez estava saindo com um cafajeste e ligou para uma amiga dizendo: "Ele foi embora! Ele me deixou!". A amiga interrompeu e perguntou: "Quantas canções?" A cantora respondeu: "Não fale assim, ele me deixou, isso é horrível!" A amiga insistiu: "Quantas canções?" A cantora respondeu: "Três". A amiga: "Ótimo, nós amamos esse cara".
É isso. Para o bem e para o mal, tudo o que o artista sente é processado e traduzido de alguma forma para as obras que cria. Sorte da plateia.
Nós amamos todas as garotas que fizeram os Beatles comporem She Loves You, I Want to Hold Your Hand e Oh, Darling. Todos os homens que piraram Tina Turner e Janis Joplin. Todos os pais opressivos de rebeldes que fugiram de casa e transformaram sua errância em acordes de guitarra. Todos os amigos que traíram Eric Clapton, todas as amantes de Mick Jagger, todos os sanguessugas com quem Billie Holiday e Amy Winehouse se meteram, todos os desalmados que fizeram Cazuza e Renato Russo atravessarem madrugadas curtindo uma fossa e rabiscando versos em guardanapos. Sem falar nos quadros, filmes e livros que nasceram de desavenças familiares, vinganças entre guetos, distúrbios emocionais inspirados por mães indiferentes.
Não há autor que não se abasteça da própria experiência e exorcize sua dor com o seu talento. Se isso é vampirismo, só nos resta erguer um altar para quem entrou com o pescoço.