"Tirando o resto, a alma é tudo o que sobra.”
Esse verso encerra um poema que escrevi há 15 anos, e desde então percebo que a alma vem sofrendo ações inconsequentes com o propósito de a aniquilarem. Meu manifesto a favor de sua resistência.
Em entrevista recente ao jornalista Fernando Eichenberg, o ator francês Jean Paul Belmondo fez uma reflexão sobre o bairro boêmio Saint-Germain-de-Près, em Paris, berço do existencialismo. Disse sentir saudades das noites de amor e das caves em que reinava uma vertigem de prazeres, segundo suas palavras. Hoje, o bairro foi tomado por butiques, e o Café de Flore e o Deux Magots são redutos de turistas.
Trata-se de uma observação sobre um bairro, apenas, mas podemos expandir essa ausência de alma para outras coisas mais, para quase tudo. Tenho escutado muita música e por mais que goste de novas bandas e intérpretes, parece que há um excesso de ensaio e tecnologia. Quase não se escuta mais um solo indócil de guitarra, uma voz afinada com a dor, a sensação de que do resultado daquilo depende a vida do artista. Sinto falta de uma integridade que vá além do profissionalismo, que ultrapasse o conceito de “correto” até alcançar, de novo, o experimentalismo e o risco, dando a volta completa. Shows ao vivo fascinam por isso. O teatro fascina por isso. É quando a alma escapa da prisão que a técnica impõe e dá uma piscadinha para a plateia.
Gosto de usar o exemplo de Picasso, que estudou muitos anos o desenho clássico, acadêmico, até se sentir seguro para trocar olhos e bocas de lugar. Estamos trocando olhos e bocas de lugar por modismo, por tendência de mercado, não por uma necessidade íntima de transcender e tocar em algo que ainda nos seja misterioso.
A alma é justamente isso, a casa do mistério, onde as emoções não são reconhecidas pelo nome, e sim pelo que provocam. Onde a simplicidade não reage às críticas, reconhece o próprio valor. Onde não existe juventude e velhice, tudo é atemporal. Onde a essência reside, ainda que meio escondida.
O resto? É ambição, exibicionismo, vaidade, angústia, medo da morte, rendição à opinião alheia, sensação de incompletude, vergonha dos fracassos, pudores, palavras demais, obsessão em cumprir metas, barulho excessivo para espantar o silêncio, negação dos próprios desejos.
Tirando o resto, a alma é tudo que sobra.
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