Não faz muito, aqui no Sul, chuva não significava medo, como agora. Seja porque cai muito ou porque não cai. Houve o tempo em que a chuva tinha poesia. As propagandas de cigarro mostravam casais se beijando na chuva – entre uma tragada e outra. O curioso é que o cigarro não apagava. Pessoas também fumavam na chuva em filmes franceses, e era tudo um charme. As pessoas, os cigarros e a chuva.
Houve o tempo da melancolia, em que a chuva vinha na hora errada. Em geral, era nas duas semanas em que a família saía de férias. Os primos tinham ido junto para a praia e a amiga da mais velha, também. Resultado: ficava a criançada toda presa em um apartamento bem menor do que o da cidade, todo mundo brigando, dias e dias na frente da televisão.
E houve o tempo em que a chuva caía porque era hora de cair, caso do inverno – que então, pasme, era frio. Chovia muito no inverno, eu sei porque usava uma capa de chuva que parecia uma embalagem de presente com flores cor-de-rosa. Eu odiava aquela capa e era obrigada a usá-la por cima do blusão e do casaco. Ia para o colégio caminhando igual a um robô envolto em plástico.
Por causa dessa capa, tenho a memória de muitos dias chuvosos no inverno, todos marcados pelo deboche dos guris da aula quando eu chegava com meu figurino plástico. Pior que a capa foi comprada enorme para servir pelo Ensino Primário inteiro, e serviu mesmo.
Nas minhas lembranças, chovia por dias seguidos no inverno, mas não lembro de a cidade ficar alagada. O muro da Mauá já estava de pé, se é que esse dado importa. Também não lembro de ler sobre inundações na capa do Correio do Povo, o original, de tamanho standard, e esse era o tipo de notícia que eu não esqueceria. Como até hoje não esqueci dos editoriais sobre o cheiro pútrido da Borregaard, a antiga fábrica de celulose de cuja chaminé saía a mistura que apodrecia o ar de Porto Alegre. Esses editoriais eram quase crônicas, tão amargos quanto engraçados. Isso eu sei porque era o meu pai quem escrevia.
Em dias de chuva, se não me falha o nariz, o cheiro saía ainda pior. Junto com as águas do Guaíba, que já não eram próprias para banho, a Borregaard foi o batismo de Porto Alegre no assunto poluição. Que ainda nem estava entre as nossas maiores preocupações.
Voltando à minha cronologia particular da chuva, água pelas canelas só fui pegar quando estudava no campus central da UFRGS, em novos invernos chuvosos, chovediços, chuvarentos. Eu sem a capa de flores cor-de-rosa, agora com roupas impróprias para a intempérie por razões de bicho-grilismo. Ia para a aula de sandália de couro e meia, ambas encharcadas. A sorte da juventude é ter a saúde tão inabalável quanto a cabeça dura.
De lá para cá, a coisa degringolou. Faltaram obras de infraestrutura, sobraram desmatamento, lixo, poluição. O aquecimento global foi tratado como piada. Agora a gente fica assim, de olho nas previsões e no céu, rezando para que a chuva não castigue ainda mais quem não merece pagar essa conta.
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Na semana passada, escrevi sobre a burocracia e recebi vários e-mails de leitores que experimentam o mesmo calvário. Nada que se compare ao que a Fernanda Ghignatti de Marco Maciel passa desde que pediu o aproveitamento de três anos de CLT e o funcionário do INSS digitou 28 anos. Sim, 28. Isso aconteceu há quatro anos e, desde então, mesmo com ordem judicial, o caso dela não se resolve. Alguma ideia?