Destrinchar (em linguagem para lá de leiga) os tipos de coronavírus que vão surgindo para tentar chegar à origem da epidemia. Nos outros países, esse estudo tem levado, em média, duas semanas.
Aqui no Brasil, o mesmo Brasil que hoje em dia despreza a ciência e não para de cortar investimentos em pesquisa, o trabalho todo foi feito em 48 horas. Na liderança, duas cientistas.
O estudo que elas conduziram ao lado de outros pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz, da Universidade de Oxford e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) vai ajudar no desenvolvimento de vacinas e testes diagnósticos.
Ester Sabino, uma das cientistas, é diretora do Instituto de Medicina Tropical e coordenadora do CADDE (Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), órgão que tem realizado estudos em tempo real sobre epidemias como dengue e zika.
Segundo Ester, o trabalho dela é ajudar na hora da crise, não apenas publicar estudos científicos depois que o problema foi controlado.
A outra pesquisadora, Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda na Faculdade de Medicina da USP e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, liderou a equipe que fez o sequenciamento do genoma viral ao lado do cientista Claudio Tavares Sacchi, responsável pelo Laboratório Estratégico do Instituto Adolfo Lutz.
Era hora do almoço, aquele almoço por obrigação no tempo que sobra entre o turno que avançou e o outro que já precisa começar. A televisão mostrava a matéria sobre a descoberta de Ester e Jaqueline, a imagem das duas ocupando toda a tela. Até que alguém na mesa comentou: olhando para a foto, a gente não dá nada por elas.
Sabe quando o macarrão entala na garganta e nem com toda água do mundo para descer? Fiquei eu lá, lutando para poupar meu obituário da causa mortis: macarrão nas vias respiratórias. E o pior é que nem estava bom.
Olhando para a foto, ninguém dá nada por elas.
Claro, né? Uma é um pouco mais velha, não sei quantos anos tem. As notícias se referiram somente ao currículo e ao feito dela. A idade, onde malha e para onde viaja nas férias não foram pauta. A outra, jovem, é negra. E estava na liderança da equipe.
Nenhuma é menos porque não pinta o cabelo, porque está fora dos padrões, porque isso, porque aquilo.
Essas são as doutoras Ester e Jaqueline, cientistas com carreiras brilhantes. E não são as únicas. Desde fevereiro, uma plataforma com as 250 cientistas brasileiras mais importantes está à disposição de quem quiser conhecê-las, com pelo menos um trabalho relevante de cada uma delas publicado. É aqui: openciencia.com.br.
A pessoa que fez o comentário sobre a foto das doutoras é minha amiga, fofa, não falou para ofender, tudo isso é verdade. Nem eu conto o fato aqui para dar lição de moral em quem seja, a minha própria moral não está em condições de fazer isso. Só parece que já passou da hora de olhar para as mulheres para além do que a aparência pode indicar.
Nenhuma é menos porque não pinta o cabelo, porque está fora dos padrões, porque isso, porque aquilo. E também não é menos porque é linda e maravilhosa, que até a beleza é usada para diminuir, em certos casos.
Como se diz por aí, não adianta olhar: tem que saber olhar. E, como tudo, essa é uma questão de vontade, de sensibilidade e de exercício. Melhor a gente não deixar para começar na segunda.