Há alguns anos, de passagem por Porto Alegre, uma moça belga que não falava uma sílaba de português aprendeu aquela que viria a ser sua palavra preferida na nossa língua: “chinelage”, assim mesmo, sem o M no final, como os vocábulos nativos (para ela) “garage” ou “maquillage”. A belga aprendeu tão bem o sentido da coisa que, não duvido, até hoje deve usar chinelage nas suas conversas, seja em que lugar do mundo estiver.
Recuperando: chinelagem, segundo o Dicionário de Porto-Alegrês do professor Luís Augusto Fischer, significa “coisa de chinelão ou conjunto de gente chinelona”, sendo chinelão um “termo altamente depreciativo, um xingamento forte. Chamar alguém de chinelão equivale a dizer que o insultado é bagaceiro, pobre, mal arrumado, descomposto, mal-educado, tudo isso junto. Também se usa, mais contemporaneamente, dizer chinelo no mesmo sentido. Usa-se também a forma feminina, chinelona”.
00a, como o Bá (ou Bah, a grafia depende do dicionário) já foi, porque não tem melhor palavra para certas situações.
Político que rouba merenda? Chinelagem. E falta de vergonha na cara, claro.
Jogar lixo na rua? Chinelagem.
Não pagar pensão para os filhos? É crime, mas também é chinelagem.
Não recolher o cocô do cachorro? Chinelagem.
Tratar mal o garçom ou qualquer prestador de serviço? Chinelagem.
Dizer “sabe com quem tás falando”? Chinelagem.
Furar fila? Chinelagem.
Estacionar onde não pode? Chinelagem.
Entrar no perfil dos outros para xingar e ofender? Chinelagem.
Debochar de alguém? Chinelagem.
Cobrar para despachar a mala no avião? Chinelagem.
Dar desculpa furada quando pego em flagrante? Chinelagem.
Dar em cima da funcionária? Chinelagem – e assédio.
Coagir os funcionários? Chinelagem – e assédio.
Ouvir música e ver vídeos sem fones de ouvido em locais públicos? Chinelagem.
Levar o carro até a areia, abrir o porta-malas e ligar o som no volume máximo? Chinelagem.
Passar fake news? Chinelagem.
Uma amiga levou o cachorro para tomar banho na pet shop. C., aqui identificado apenas pela inicial para preservar sua identidade canina, voltou para casa com o lombo perfumado, uma gravata vistosa no pescoço e toda a parte de baixo, patas, rabo, barriga e adjacências, do jeito como tinha ido, em estado de apocalipse. Lavaram o bichinho pela metade. Parecia aquele vilão do Batman, o Duas Caras. Comentário da minha amiga: chinelagem. E não é?
Chinelagem é a tradução perfeita para tudo o que incomoda e desrespeita. Perturbação, confusão, desordem, conturbação, barulho, alvoroço, descortesia, insulto, ultraje, desaforo, desconsideração, afronta, todas essas são palavras ótimas, muitas delas bonitas, mas nenhuma é tão completa quanto chinelagem. Chinelagem define esses tempos que estamos vivendo, com dinheiros mal explicados e pessoas que se acham acima de explicações. Tempos em que o que foi prometido não dá pinta de que será cumprido. Chinelagem.
Outro exemplo: semana passada, um senhor bem vestido interrompeu o atendimento de outro cliente no banco gritando que deveria passar na frente dos demais seres humanos do recinto por causa de sua polpuda conta mega-ultra-uber-qualquer coisa. A pobre gerente, na saia justa, tentou transferir o magnata para uma assistente, mas ele não aceitou. Era VIP e queria ser tratado como tal. Chinelagem pura.
Por essa e muitas outras, percebe-se que a chinelagem não tem a ver com a condição econômica ou social de alguém. Nada disso. A chinelagem é um triste estado de espírito. Riscada do dicionário ela dificilmente vai ser, mas que a gente consiga passar longe dela no ano que vem aí.
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