Quando a gente era criança, ele só trabalhava na noite de 24 para 25 de dezembro. Não se sabe o que fazia da vida nos outros 364 dias. Na praia é que não ia, homem afeito ao frio que sempre foi. Seu físico também nunca indicou que frequentasse estações de esqui ou se dedicasse ao snowboard nas longuíssimas férias. Mais provável é que passasse o ano lendo bons livros, sentado diante da lareira acesa e comendo castanhas assadas – nas histórias de frio, as pessoas sempre comem castanhas assadas.
Bons tempos. Bem verdade que a jornada dele era dura. No espaço de poucas horas, cruzava os céus enquanto as famílias se distraíam com perus enfeitados com abacaxi e ameixa. Imagino o seu nervosismo. Se os presentes não estivessem na árvore quando a primeira criança levantasse da mesa, o bom nome do Papai Noel estaria manchado para sempre – como acontece com essas lojas que prometem e não entregam. Com a diferença de que as lojas não se importam com isso.
Então, de repente, o mercado ficou muito mais exigente. Antes, caminhão de bombeiro era caminhão de bombeiro, e fim de papo. Hoje a escada deve ter néon, os bonequinhos devem vestir uniforme térmico que suporta altas temperaturas, a mangueira deve soltar água gaseificada com sabor morango e, se o caminhão não voar, pode esquecer. Sem falar que pequenas e pequenos estão se lixando para caminhão de bombeiro. Querem iPad, iPhone, videogames, computadores, skate com motor – e por aí vai. Só dá pena é dos pais, que facilmente viram vítimas daquilo que mais se assemelha a uma bola de neve no nosso Natal tropical: o cartão de crédito.
As coisas também mudaram dentro dos domínios do Papai Noel. Já não havia como acobertar duendes explorados, renas voando na base da relhada e uma mulher que nunca saía de casa, abafada pelo protagonismo dele. Que Bom Velhinho era aquele que comandava despoticamente sua pequena engrenagem natalina? Ante a possibilidade de virar alvo de protestos, restou ao Papai Noel calçar as botinas e sair para trabalhar mais cedo, em novembro. Muitas vezes, em outubro. E, nos casos mais dramáticos, em setembro.
E assim chegamos a 2018. Esses dias, no metrô, um Papai Noel dormia no banco destinado aos idosos. Já tinha tirado os enchimentos, a roupa de cetim vermelho sobrava no corpo. A máscara, que mais parecia a cara de um velho mau de filme de terror, ia pendurada na mochila puída em que apoiava a cabeça. Eram mais de onze da noite, Papai Noel devia estar saindo do shopping. De certo sonhava com dias mais folgados, ele sentado diante da lareira, comendo castanhas assadas. Ah, se desse para ir de trenó até a Pavuna.
Bem verdade que Papai Noel não está sozinho. Com a tal da reforma trabalhista, todos nós ralaremos até mais tarde. Mas esse é um assunto para depois. Antes tem o amigo-secreto, a ceia e mais um monte de compromissos ainda em dezembro – já se sabe que com o décimo-terceiro dos funcionários outra vez parcelado, o que é péssimo não apenas para eles, mas para toda a rede que se movimenta com o Natal. O jeito é imitar o Papai Noel fardado no capricho que, ontem de manhã cedo, apostava na lotérica da esquina. Uma mãe bem jovem ameaçou o filho pequeno, que se debatia e fazia manha enquanto ela tentava marcar as dezenas no cartão: para com isso que o Papai Noel não vai te trazer presente. Nem o Papai Noel deu bola, nem o guri. As coisas, realmente, mudaram muito.
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