Qual foi a última novela cuja trilha sonora valia a pena escutar? Roque Santeiro, de 1985? Pois foram precisos mais de 30 anos para que essa excepcionalidade voltasse a ocorrer na televisão brasileira: a primorosa música de Velho Chico é um poderoso antídoto ao lixo sonoro despejado diariamente pela TV aberta, consonante com o apuro estético que o diretor Luiz Fernando Carvalho dedica a aspectos como a fotografia e a direção de arte de suas produções. A Som Livre lançou dois discos com as músicas de Velho Chico: um volume reunindo 14 canções e outro com 27 dos mais de 40 comentários escritos e regidos pelo compositor Tim Rescala, à frente da Orquestra Sinfônica Heliópolis, de São Paulo – a ideia é editar ainda outro álbum com mais músicas escolhidas por Carvalho.
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Coerentemente com as distintas fases em que a trama transcorre e com a imagem onipresente do rio que batiza a novela – cujas águas podem ser cristalinas ou turvas, rasas ou fundas –, a seleção inclui gravações antigas e registros inéditos, sucessos evidentes e tesouros esquecidos, temas solares e melancólicos. Essa variedade sonora orbita em torno de um núcleo cultural: a música popular e de raiz folclórica divulgada por artistas nordestinos que se projetaram nacionalmente nos anos 1970. O contundente abre-alas da compilação é a canção-manifesto Tropicália, em nova versão de Caetano Veloso acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Heliópolis.
A viagem pelo caudal das sonoridades sertanejas inclui o galope Gemedeira, de Robertinho de Recife e Capinam, na voz de Amelinha, o maracatu Me leva, de Renata Rosa, e a peculiar mistura de rusticidade e erudição da obra armorial de Elomar na Incelença do amor retirante e na Suíte correnteza – um pot-pourri com o cantor e violeiro ao lado de Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai.
O disco recupera ainda hits de tempos em que o rádio brasileiro era menos estúpido, como Enquanto engoma a calça, de Ednardo, e Veja (Margarida), em nova versão tipo balada soul com Marcelo Jeneci – menos inspirada do que a gravação do autor Vital Farias. Já Alceu Valença comparece com Flor de tangerina, saboroso xote lançado há 14 anos pelo pernambucano e que não fez alarde na época, e Chico César emociona na Serenata (Ständchen) – um Lied de Schubert transformada em linda toada por Arthur Nestrovski.
O vigor tropicalista de Caetano está representado ainda por Gal Costa e sua interpretação acústica de Como 2 e 2 – em número ao vivo extraído do antológico show Fa-tal – Gal a todo vapor (1971) – e pelo próprio baiano cantando a catártica Triste Bahia. O trabalho se encerra com outra peça eloquente: Senhor cidadão, em que Tom Zé canta-reza "Com quantos quilos de medo / Se faz uma tradição?".
"Recolhi estas canções como um pajé recolhe e escolhe suas folhas para, depois, extrair delas um caldo do país", explica Luiz Fernando Carvalho no encarte do CD. Que venha logo então a próxima pajelança!
VELHO CHICO, VOL. 1
Vários intérpretes.
CD com 14 faixas, Som Livre.
R$ 29,90
Cotação: Excelente
VELHO CHICO – MÚSICA ORIGINAL DE TIM RESCALA
De Tim Rescala.
CD com 27 faixas, Som Livre.
R$ 29,90
Cotação: Muito bom