Luciana Kraemer*
Redescobri o prazer de parar tudo o que estou fazendo para assistir a uma novela do horário nobre da TV brasileira. De tão empolgada, espalhei a notícia. "Então, você virou noveleira?", perguntou rindo um colega professor depois de ver meu post elogiando Velho Chico, exibida pela RBS TV, no Facebook. "Puxa, vou parar para ver", me disseram alguns amigos surpresos com aquela militância repentina na teledramaturgia.
Mesmo sendo do campo da Comunicação, estudo o gênero informativo – ficção não é minha praia. Mas tenho cá meus argumentos para defender que essa é uma novela que propõe algo de novo ética e esteticamente, e vale ser vista. Tudo começou com a trilha, nem tinha chegado a admirar os longos planos do encontro entre o céu vermelho e o rio São Francisco, quando comecei a ouvir a voz poderosa de Maria Bethânia embalando as cenas dos protagonistas. Segui fazendo o jantar das crianças, ainda sem olhar muito para a tela, quando passou a tocar Como dois e dois, com a Gal Costa, uma das minhas canções prediletas. E aí foram surgindo Geraldo Azevedo, Novos Baianos, tudo muito Nordeste, muito Brasil, e lindas imagens da caatinga. Parei o que estava fazendo para ver se estava ouvindo bem: o diálogo era entre dois jovens atores que reivindicavam novos manejos para o solo, porque o rio São Francisco iria morrer, carregando junto a vida que se nutre daquelas águas.
Folhetim sem medo de temas ideológicos
Uau, é uma novela do horário nobre, e está discutindo sustentabilidade? Alternativas de produção para um bioma? Nem o jornalismo tem tratado bem esses temas! Em outro capítulo, os protagonistas falavam sobre a importância da economia cooperativada para os pequenos produtores, um sistema de ganha-ganha. Quando vi, já estava envolvida pela linguagem e pelos temas que, infelizmente, estão fora da agenda nacional. Me surpreende o fato de Velho Chico não ter medo de ser ideológica, em um momento em que esta expressão é tão maltratada. Em vários diálogos, é possível perceber que há ali uma visão de mundo com ideias de liberdade, de ação social e política. A liberdade de pensamento é exercitada, primeiramente, no núcleo familiar. Não é fácil lutar contra o marido, a esposa, o avô, uma classe política que não nos representa, mas está agarrada ao poder exigindo uma atitude de cada um.
Nesse sentido, o diretor Luiz Fernando Carvalho, conhecido pela ousadia, acerta quando aposta nos planos intimistas, não temendo as sombras, os desfoques, escancarando mais as linhas de expressão que marcam o tempo dos personagens do que a exuberância de corpos e seus decotes perfeitos reinantes na indústria televisiva. É uma opção, e está fora da curva, por isso, também, gosto. Aprecio não ser agredida pelo merchandising de carros luxuosos, marcas de sabonete ou batom. No lugar do apelo ao consumo, os autores me oferecem o pensamento de uma comunidade indígena, a inteligência de uma curandeira que tem a sabedoria de quem escuta a natureza e trabalha para que sua gente encontre paz.
Agora, leio notícias de que a obra enfrenta problemas com a audiência e de que há pressão para deixá-la com mais cara de novela. Como telespectadora, espero que siga fiel à filosofia que passa, de ser livre para reinventar a teledramaturgia e nos mostrar que Monte Castelo (Legião Urbana) tem total sintonia com a oração de São Francisco.
* Jornalista e professora da Universidade do Vale dos Sinos