Depois de noites históricas com Fernanda Montenegro e Maria Bethânia no palco do Salão de Atos da universidade em 2018 e 2019, o Mérito Cultural PUCRS 2020 será online, às 20h da próxima quarta-feira (19) . Aos 90 anos, o ator Lima Duarte foi o escolhido para receber a honraria. Em transmissão direta desde seu sítio em Indaiatuba (SP), ele falará com uma plateia virtual e fará leituras de textos de João Guimarães Rosa e Padre António Vieira.
Na entrevista a seguir, justifica por que escolheu esses dois autores e faz algumas confidências, entre as quais, por exemplo, a de que “quase” foi convencido pelo folclorista Barbosa Lessa (1929-2002), seu amigo e um dos fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), a se mudar para uma propriedade de Camaquã, no centro-sul gaúcho.
A pedido de Lima Duarte, as questões foram enviadas por escrito, e as respostas (concedidas a apenas algumas das perguntas) foram encaminhadas em áudios de WhatsApp.
O senhor trabalha em televisão desde 1950, primeiro ano da TV Tupi, emissora pioneira no Brasil. Hoje, como olha para trás vislumbrando essa longa carreira e como avalia o contexto atual dessa mídia ante o crescimento do streaming?
Eu trabalho desde 1946! Acabou a Segunda Guerra Mundial, meu pai me mandou embora de Minas Gerais, e eu cheguei em São Paulo em um caminhão de manga. Por estar no lugar certo, na hora exata, fui conduzido à Rádio Tupi, onde trabalhei como operador de som. Aí, em 1950, quando veio a TV, fui buscar os equipamentos em Santos, no litoral. Lembro do caminhão que subiu (à capital paulista) com a faixa: “Aqui vai a primeira emissora de TV da América Latina”. Eu tinha 20 anos. Portanto, o que vejo hoje é que vivi plenamente a TV desde seu princípio. Fiz tudo o que tinha de fazer, fui ator, diretor, rompi com as tradições dirigindo, por exemplo, Beto Rockfeller (novela de 1968)...
O senhor é um ator versátil, mas invariavelmente encarna figuras que representam o “brasileiro comum”. De vem essa característica?
O ator que eu sou se fez no Teatro de Arena, em São Paulo. Lá aprendi a ser ator, o que é preciso para isso, o que é estar em contato com os outros e ser um reflexo das pessoas e da sociedade. Tenho um monólogo sobre isso que diz assim: “Ser ator é jogar essa vida de fora para dentro, depois devolvê-la botando para fora”. Sou reflexo do que vivi. Transformei em interpretação o meu pai, a minha mãe, os meus tios, todo aquele povo do interior de Minas. Por isso é que sou roseano. Sou muito Guimarães Rosa. Aprendi que eu tenho de falar é com a minha gente. E sobre esse negócio de caipira... Sou brasileiro! Fundamentalmente brasileiro. Mesmo quando saio do Brasil. Já filmei na Europa, sempre como brasileiro. É meu orgulho ser assim.
Sou reflexo do que vivi. Transformei em interpretação o meu pai, a minha mãe, os meus tios, todo aquele povo do interior de Minas. Aprendi que eu tenho de falar é com a minha gente.
O que pode antecipar das leituras de Guimarães Rosa e do Padre António Vieira que fará na quarta-feira?
Do Guimarães Rosa vou ler Corpo de Baile (1956), livro de novelas que ele publicou depois dos contos de Sagarana (1946) e antes do romance Grande Sertão: Veredas (1956). Já adaptei Guimarães Rosa para a TV em 1951! Foi o conto Corpo Fechado, adaptado pelo Dionísio Azevedo e dirigido por mim – também atuei. Posso dizer que Guimarães eu amo desde que comecei a ler, desde antes de chegar ao entendimento do magnífico Grande Sertão: Veredas. O Padre Vieira eu encarnei na cinebiografia Palavra e Utopia (2000), de um dos maiores cineastas do século 20, Manoel de Oliveira. Sabe que houve questionamentos em Portugal pelo fato de o Manoel ter convidado um brasileiro para interpretar Vieira, um vulto insigne do barroco português, chamado por Fernando Pessoa de “a catedral da língua”? O que às vezes esquecem é que Vieira era negroide. Ele era filho de uma escrava de São Tomé com um nobre português. Era, portanto, como nós, brasileiros: caboclo. Filho de negros ou índios com europeus. Todos nós, brasileiros, somos assim.
Será que vamos seguir cometendo os mesmos erros, as bobagens que nos conduziram a essa situação? Foi o nosso modo de vida, errado, que nos levou a isso (à pandemia do coronavírus).
Como tem sido seu isolamento na pandemia? Em entrevista recente, o senhor disse que tem refletido a partir dos grandes filósofos. o que mais tem feito?
Estou fugindo dessa tragédia que atacou a humanidade. Penso: será que não vamos aprender a lição? Será que vamos seguir cometendo os mesmos erros, as bobagens que nos conduziram a essa situação? Foi o nosso modo de vida, errado, que nos levou a isso. Tenho pensado muito nisso, passado em revista minha vida e o mundo lá fora como um todo. Vi muita coisa, e agora, no meu sítio, estou vivendo com minhas ideias. Para mim, o pensamento sempre foi fonte de alegrias. Gosto de ficar destrinchando uma ideia. Um exemplo é o próprio comportamento do gaúcho, que fui aprendendo com Barbosa Lessa, consultor de dois filmes que fiz, O Sobrado (de Walter Durst e Cassiano Gabus Mendes, 1956) e Paixão de Gaúcho (Durst, 1957). Lessa me ajudou a mergulhar na psicologia do gaúcho. Ele era tão meu amigo que quase me convenceu a não comprar o sítio aqui onde vivo, mas outro em Camaquã (RS), perto do dele. Hoje, tenho vivido com essas amizades e com esses ensinamentos, pensando no que aprendi e naquilo que os amigos foram e ainda são, aqui, dentro de mim.