Antes que a humanidade virasse a página da História, abrindo o sombrio capítulo do coronavírus, havia a era do terror. Os ataques de 11 de setembro de 2001 questionaram o papel hegemônico dos EUA como potência econômica e militar planetária e modificaram as estruturas da ordem global. Desde então, muitas decisões de política externa da Casa Branca foram pautadas a partir das cenas dos aviões usados como mísseis contra prédios em Nova York e Washington.
Poucas obras de ficção captaram de forma profunda nuances, dilemas e contradições do período. A série Homeland, cujo último capítulo da oitava e derradeira temporada foi ao ar nos EUA no dia 26 (e pode ser visto por streaming no Brasil, na Fox Play - as sete primeiras temporadas também estão na Globoplay), não só entendeu esse contexto como retratou as metamorfoses pelas quais a chamada guerra ao terror foi passando. No universo fictício da obra, cujo título evoca a palavra que os americanos usam para designar a “terra natal”, o “lar”, uma analista da CIA, bipolar e amante de jazz, incorpora os medos e as culpas da superpotência, que foi incapaz de detectar sinais do megatentado. Na série, o 11 de Setembro já ocorreu. O desafio é evitar que ele se repita.
É nessa sociedade traumatizada e paranoica que um fuzileiro naval desaparecido por oito anos regressa do cativeiro no Iraque. A protagonista, Carrie Mathison (Claire Danes), suspeita de que ele tenha se convertido ao radicalismo islâmico e foi enviado para um novo ataque. Embora interessante, esse mote inicial não sustentaria os oito anos de Homeland, que foi inspirada na série israelense Prisioners of War. Seus roteiristas conseguem manter uma união carnal entre o enredo e a realidade da geopolítica ao longo de todos esses quase 20 anos. Estão lá os dilemas de uma nação que se imaginava invencível e foi jogada em sua fragilidade da noite para o dia, um país que mergulhou no atoleiro de duas guerras (Afeganistão e Iraque), as idiossincrasias dos conflitos sem fim entre israelenses e palestinos (e os interesses das nações no grande do jogo do Oriente Médio), as sutis diferenças entre as causas dos grupos extremistas, seu mimetismo com autoridades locais, a transformação da rede Al-Qaeda no Estado Islâmico e a mudança de palco de seus atos, com a Europa como epicentro.
Nas mais de 80 horas de Homeland, encontramos presidentes americanos que buscam a guerra como subterfúgio diante de pressões internas, autoridades que usam o medo para justificar a redução de direitos civis e perseguir minorias, as contradições de uma democracia que se orgulha de ser campeã de direitos humanos, mas que, em países aliados convertidos em masmorras, usa de tortura em nome de “proteger” a terra natal.
A um observador da geopolítica, não passam despercebidos a maneira como a guerra ao terror mudou, de conflito convencional, com tanques e tropas, para o uso de drones, arsenais biológicos, tecnologia da informação, hackers e fake news para manipular a opinião pública.
Da realidade para a série, aparecem as alianças de ocasião que os EUA fizeram: o líder de um grupo opositor, apoiado pela CIA, derruba o regime adversário aos interesses americanos e, uma vez no poder, torna-se rival no melhor exemplo da máxima da política internacional segundo a qual “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. A história é pródiga em exemplos, de Osama bin Laden a Saddam Hussein.
E o jogo duplo exercido por seres humanos também existe entre países. Ficam claras as duas caras de governos como o do Paquistão: a ditadura que deu origem ao Talibã é aliada americana, abrindo seu espaço aéreo para os caças dos EUA de George W. Bush bombardearem o Afeganistão. Ironia da política internacional, hoje Donald Trump é parceiro do governo indiano, adversário regional do Paquistão.
Homeland trouxe uma impressionante capacidade de caminhar junto com a notícia – a influência crescente da extrema-direita nas entranhas do poder de Washington –, às vezes à frente dela, como na última temporada, com as negociações de paz entre os EUA e o Talibã. Mas talvez seu maior mérito seja desidealizar o papel das nações. O mesmo país que sofreu um atentado devastador em 2001 usa drones para atingir terroristas e acaba matando civis como efeito colateral. Mais: o terrorismo é um bicho de várias faces, pois pode ser a arma de grupos que reivindicam autonomia ou instrumento do Estado para impor sua vontade. Não se trata de justificar a violência. Mas de lembrar que, nas relações internacionais, não há ingênuos. Nem mocinhos.
Homeland termina como talvez tenha terminado a era do terror, agora que barbudos entocados em cavernas foram substituídos, como inimigo globais, por um vírus que começou na China.
Onde ver
As oito temporadas disponíveis no Fox Play. As sete primeiras também estão na Globoplay.