A fórmula é mais do que conhecida na indústria do entretenimento: quando uma produção atinge grande sucesso, os responsáveis por ela aproveitam para aumentar ganhos explorando seu universo. Pode ser com bonecos e outros objetos que fazem referência a personagens, pode ser com novas produções derivadas (“spin-offs”, no jargão dos estúdios). Poucas vezes deu tão certo como no caso de Better Call Saul, que a Netflix produz em associação com a Sony e a AMC, rede que levou ao ar a histórica Breaking Bad.
Poucas séries tiveram uma curva dramática tão coerente e bem formulada como Breaking Bad, que terminou em 2013, após cinco temporadas. Está nas possibilidades oferecidas por sua dramaturgia o segredo da qualidade de Better Call Saul, que se propõe a narrar a jornada do personagem-título, o advogado de “porta de cadeia” Saul Goodman (Bob Odenkirk), antes que ele se aproximasse dos traficantes da produção original, que se passa em Albuquerque, cidade norte-americana localizada a quatro horas da fronteira com o México.
Humanista revoltado com o sistema, vilão dócil e cativante, Saul já tinha um fascínio todo particular em Breaking Bad; em Better Call Saul (título tirado do slogan que ele usava para vender seus serviços), descobrimos que se trata de um sujeito ainda mais complexo, com personalidade moldada pelas relações problemáticas com o irmão bem-sucedido e com o ofício pelo qual é apaixonado.
Esse não é seu nome de batismo. Sua trajetória até a transformação no “inocente vigarista” a quem havíamos sido apresentados quando a jornada narrada era a da transformação do pacato Walter White no criminoso Eisenberg (Bryan Cranston), protagonista de Breaking Bad, nos proporciona uma visita a recônditos obscuros da alma humana – aqueles que não se quer nunca despertar, sob pena de a reação ser incontrolável. Para o personagem, a trama da série é uma longa provação, que parece chegar ao ápice no oitavo episódio da recém-finalizada quinta e penúltima temporada, quando ele se vê perdido no deserto do Novo México. Das grandes provações não se sai o mesmo, mas, nessa série, como nas maiores construções dramáticas que conhecemos, mais do que isso, se sai mais humanizado – ainda que mais contraventor.
A exposição da intimidade de Saul acaba por impactar quem está ao seu redor. É quando crescem, com ele, personagens como sua companheira Kim Whexler (Rhea Seehorn) e o capanga Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks). Esse último sabemos como termina em Breaking Bad, já Kim não existe na série original. Poderia, ela própria, ganhar a sua série derivada, e então mergulharíamos a fundo na alma de uma advogada competente, capaz de ascender sem burlar o sistema, mas, paradoxalmente, se apaixonar por quem se rebela contra esse mesmo sistema. Teríamos um spin-off do spin-off. O que atesta o quanto Better Call Saul é capaz de ressignificar e redimensionar as derivadas no âmbito da indústria, levando-as a um patamar muito superior ao de sua premissa estritamente comercial.
A série, embora reproduza com competência a forma e a encenação de Breaking Bad, ganhou vida própria ao ir além da original, mostrando que isso também é possível em derivações – algo talvez inédito nessa ainda incipiente “era de ouro” da TV.
Seja lá como Kim, Mike e Saul terminarem, seja lá qual for o fim de Nacho Varga (Michael Mando), Howard Hamlin (Patrick Fabian) e Lalo Salamanca (Tony Dalton), vai ficar uma vontade de ver mais.
Onde ver
Todas as cinco temporadas estão na Netflix. A sexta e última será exibida em 2021.