SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sobre o que fala "Bacurau"? Em um nível literal, o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles mostra a reação violenta da população de uma cidadezinha no interior de Pernambuco após ser atacada, sem motivo aparente, por um grupo de americanos igualmente violento.
Em um nível mais profundo, no entanto, o longa-metragem funciona como uma alegoria dos afetos subjacentes à psiquê humana, que, em determinadas situações, podem levar alguém a aderir a lógicas de destruição e gozo, em total ruptura com o pacto civilizatório. Ao menos foi esta a análise do psicanalista Rodrigo Lage Leite ao falar de "Bacurau" na terça-feira (4).
Vencedor do prêmio do júri do Festival de Cannes, o filme foi exibido e debatido na primeira edição do ano do Ciclo de Cinema e Psicanálise. O evento é realizado pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo e pelo MIS (Museu da Imagem e do Som), com apoio da Folha de S.Paulo.
Lage Leite vê o filme como uma iniciativa para romper a paralisia da sociedade quando confrontada com ideologias ou atitudes fascistas. Ele citou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), que afirmou que "a cadela do fascismo está sempre no cio" -e que, portanto, os impulsos autoritários são temas que nunca devem sair da pauta.
O psicanalista afirmou que muitos críticos subestimaram a tensão latente dos personagens antes da matança e ignoraram, com isso, a complexidade das cenas iniciais, mais ternas e idílicas (como o velório de Carmelita, matriarca negra do povoado).
"Reduzir essa parte a um nordestino bom, sofredor, como fizeram alguns, me parece tão estranho quanto o comportamento dos forasteiros brasileiros quando chegam em Bacurau", afirmou. "Dá uma impressão de que aquela sofisticação afetiva, emocional, não cabe àquele povo pobre [na visão dos críticos]."
Para ele, os diretores fizeram um jogo entre duas forças descritas por Freud em sua obra: a pulsão sexual (que move a vida e cura a neurose) e a pulsão de morte. A opção por metáforas diretas, apropriação de gêneros populares (como ação e western) e carnificina pop seria um modo de alcançar um público maior, afirmou.
Presente no debate, o crítico de cinema da Folha Inácio Araújo concordou com a tese, afirmando que o filme conseguiu "quase um milagre" ao ser visto por cerca de 800 mil pessoas no Brasil. "Em matéria de invasão, o cinema brasileiro pode se dizer doutor. Não há nada mais invadido no mundo do que o mercado cinematográfico brasileiro."
"Se vocês pegarem uma página dos guias [culturais] de jornal, não existe um privilégio tão brutal quanto o dado ao cinema estrangeiro, especialmente ao americano. É muito difícil dialogar com o espectador nessas circunstâncias", afirmou Araújo.
Ele vê o filme como crucial para ocupar as mentes dos brasileiros com histórias nacionais e ter um contraponto à hegemonia norte-americana e europeia. "Nós nos sentimos tão americanos, ou tão europeus, porque recebemos muito material de lá e não temos a nossa própria imagem. Somos que nem vampiros, não conseguimos nos ver no espelho."
Araújo considera o cinema nacional produzido hoje o melhor feito desde os anos 1960. Ele situa "Bacurau" como parte da produção pós-"Cidade de Deus", que introduziu a determinação moral individual nos personagens. Se na geração do Cinema Novo, por exemplo, os criminosos eram retratados como consequência de uma sociedade desigual e desordenada, o longa de 2002 criou uma nova linha ao sugerir que a opção pelo crime é uma escolha do indivíduo.
O crítico citou como pontos altos os momentos em que o filme faz referência ao passado, seja ao reciclar canções utilizadas por Glauber Rocha (1939-1981) em sua obra, seja ao atualizar os dramas do cangaço e de Canudos.
Uma espectadora observou que, no filme, o resgate histórico feito pelos habitantes do povoado é um ponto-chave para a vitória contra os invasores estrangeiros. É no museu histórico de Bacurau, repleto de artefatos da era do cangaço, que os moradores adquirem o arsenal bélico e encurralam parte dos inimigos.
Inácio Araújo notou que Bacurau, antes de ser invadida pelos americanos, funciona como uma espécie de utopia imersa na pobreza. "É uma cidade onde não existe preconceito. Os personagens são homens, mulheres, brancos, homossexuais, heterossexuais, transgêneros e convivem perfeitamente ali. O filme nos leva à hipótese de uma sociedade que rompe com preconceitos muito antigos -e é bombardeada."
*A mediação foi da psicanalista Luciana Saddi.