SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu não deveria ser uma referência. Não gosto de me ver como ícone", diz, modestamente, a filósofa e ativista negra feminista Angela Davis, 75. Ela deu entrevista coletiva em São Paulo na manhã desta segunda (21), horas antes de falar à plateia externa do Auditório Ibirapuera. No último sábado (19), fez conferência na cidade com ingressos que acabaram em minutos.
"Sou tímida. Gosto de trabalhar nos bastidores, mas fui lançada para frente por um acidente histórico, resultado de ter me tornado alvo das instituições repressivas racistas dos Estados Unidos."
Presa em 1970, acusada de sequestro, assassinato e conspiração, Davis chegou a figurar na lista do FBI dos dez mais procurados do país. A campanha por sua liberdade difundiu sua imagem pelo mundo.
O cabelo black power e o punho cerrado se tornaram parte da iconografia pop da contracultura global, sinônimo de bandeiras tão fascinantes quanto temidas: o comunismo, o feminismo e o poder para o povo negro.
Quase 50 anos depois, Davis se diz dividida tanto a respeito de seu lugar na história do feminismo negro quanto em relação ao deslumbramento que sua oitava passagem pelo Brasil tem gerado junto a intelectuais e ativistas locais.
"Não me vejo como um indivíduo que mereça toda essa atenção. Então, não vejo todas essas pessoas vindo me ver, mas vindo reconhecer o poder da ação coletiva", afirma.
A visita de Davis ao país --motivada pelo lançamento no Brasil, pela Boitempo, de sua autobiografia escrita em 1974-- ganhou especial relevo num contexto de popularização do feminismo negro brasileiro e de busca por referências de contestação diante da ascensão de um governo cujos discursos já exaltaram a tortura e a criminalização de movimentos sociais.
Durante o final de semana, a ativista visitou Preta Ferreira, liderança do Movimento dos Sem Teto do Centro, o MSTC, que passou mais de três meses presa, acusada de extorquir moradores das ocupações do movimento.
"A tentativa de apresentar esses movimentos como organizações criminosas, prendendo suas lideranças, só mostra o tamanho do trabalho que temos pela frente", disse Davis sobre o encontro, que dialoga com parte fundamental de sua historiografia.
Depois da passagem pelo sistema prisional, a filósofa abraçou uma militância mais radical, e mais ameaçadora diante do discurso da lei e da ordem --a do abolicionismo penal, que entende o sistema de Justiça criminal como uma estrutura de controle racista e classista, e prega que os conflitos sociais sejam majoritariamente resolvidos fora dele.
Anticapitalista, feminista, antirracista e abolicionista, Davis diz que suas "rubricas" são muitas e incluem a militância antiguerra e antimilitarização, a luta pelos direitos das pessoas LGBT e das pessoas com deficiências, além do ativismo ambiental, "especialmente importante diante da crise da Amazônia".
Para ela, não existe bandeira mais importante que outra porque todas se relacionam, numa interseccionalidade que precisa ser reconhecida.
"Não posso participar efetivamente de um movimento contra o racismo sem organizar sua dimensão
heteropatriarcal, sem reconhecer que o capitalismo teve um papel importante em estruturá-lo e sem observar o impacto da colonização sobre os povos originários", disse.
Davis diz que, assim como o ativismo brasileiro bebe na fonte do movimento negro e feminista americano, há muito o que aprender com os movimentos de base brasileiros.
"Sinto esse impulso coletivo, em especial entre mulheres jovens e negras, no Brasil. Meu destino é fazer conexões entre as lutas daqui e dos EUA. E esse é o trabalho que me inspira."
Ícone a contragosto, Davis é autora de cinco livros já traduzidos para o português e se celebrizou por sua história e por frases que chamam à ação, tais como: "Eu não vou mais aceitar as coisas que eu não posso mudar. Eu vou mudar as coisas que eu não posso aceitar".