A epígrafe gravada em latim no bloco de pedra antigo era curta e terna: "Claudia Aster, prisioneira de Jerusalém". Levada para Roma acorrentada após a repressão da revolta em Jerusalém, em 70 d.C., aparentemente foi a concubina de um romano importante que quis lhe dar um enterro digno e acrescentou um elemento incomum à lápide: "Rezo, cuido e obedeço à lei para que ninguém retire a inscrição".
Essa homenagem é uma das muitas revelações no novo Museu Nacional do Judaísmo Italiano e da Shoah, em Ferrara, e destaque da primeira grande exposição da instituição, "Judeus, uma História Italiana. Os Primeiros Mil Anos", que examina a relação longa e complexa entre Roma e Jerusalém, cristianismo e judaísmo.
Os judeus vivem na Península Itálica há mais de dois mil anos, uma das comunidades mais antigas da Diáspora Ocidental. Mesmo antes da destruição do Templo de Jerusalém, na época o centro do judaísmo, e do transporte que se seguiu de prisioneiros para Roma, havia judeus vivendo na cidade e nas províncias do sul, às quais chegaram como comerciantes e refugiados.
A história da vida judaica na Itália pode parecer uma longa saga de sofrimento e trauma: escravidão pelos romanos; Inquisição e perseguição pela Igreja; segregação forçada em bairros superlotados na Idade Média. O primeiro de muitos guetos foi estabelecido em Veneza, em 1516. O século XX viu a ascensão do fascismo, das leis antissemitas e do Holocausto, quando quase 7.700 judeus de uma população total de 44.500 foram mortos.
Porém há outro aspecto dessa história – de aceitação, integração e até reconhecimento ao longo da civilização na península. "O diálogo histórico com a cultura italiana enriqueceu o judaísmo local e também permitiu à cultura italiana a incorporação dos valores e da contribuição judaicos", explica Simonetta Della Seta, nomeada diretora do museu em 2016.
Conforme o museu avança cronologicamente através das eras da história italiana, as adições vão sendo feitas à mostra permanente. Uma segunda grande exposição foi inaugurada em abril, sobre os judeus e a Renascença. O Holocausto será abordado em uma exibição permanente a ser inaugurada em setembro.
Ferrara, cidade do nordeste italiano entre Bolonha e Veneza que já foi um centro medieval da vida judaica, pode parecer uma escolha improvável para o museu, conhecido no país como MEIS, ou Museo Nazionale dell'Ebraismo Italiano e della Shoah. Núcleo renascentista importante e dominado por um enorme castelo, bastião da poderosa família Este, cercado por muralhas e rampas, Ferrara é opção alternativa no que se refere à vida judaica e ao turismo popular no país, mas talvez o MEIS mude isso.
O museu foi parcialmente construído sobre as ruínas de uma antiga prisão na Rua Piangipane, uma estrutura de tijolos de dois andares perto do antigo gueto judaico. Usada para prender antifascistas e judeus durante a Segunda Guerra Mundial, foi desativada em 1992.
Mas por que escolher um antigo presídio para abrigar um museu novo? "O desafio é assumir um lugar que era sombrio, onde as pessoas ficavam confinadas, e transformá-lo em espaço amplo, aberto a ideias, à cultura, ao diálogo. Essa é nossa missão", afirma Della Seta.
A coleção de mais de 200 artefatos e instalações multimídia sustenta a narrativa alternativa, de coexistência e contribuição. Um mosaico do século V retratando duas matronas, uma com o Velho Testamento, a outra com o Novo, mostra uma única comunidade de fé, capítulo de uma relação com o cristianismo que, de outra forma, é carregada de tensão. Há documentos e instrumentos preciosos que mostram as contribuições dos judeus à medicina, à ciência e à astronomia.
Durante séculos os judeus foram os escritores, os escribas; então eles se tornaram os tipógrafos dos italianos.
SIMONETTA DELLA SETA
diretora do Museu Nacional do Judaísmo Italiano e da Shoah
Também à mostra estão os fragmentos de manuscritos e textos antigos destacando a importância da alfabetização na história judaica italiana. "Durante séculos os judeus foram os escritores, os escribas; então eles se tornaram os tipógrafos dos italianos", conta Della Seta. E observa que entre as primeiras editoras da Itália, durante a era medieval, estavam as casas judaicas em Veneza e Soncino.
Ferrara representa o que foi, durante um tempo, a época de ouro dos judeus italianos. Era política do duque d'Este receber os sefarditas exilados da Espanha e outros judeus na cidade no século XVI, período de ascensão da Igreja em que os judeus se viam confinados a guetos em Roma e Veneza.
"O duque sabia que os judeus, sendo principalmente mercadores e comerciantes, podiam contribuir com a ambição dos Este de ampliar a indústria têxtil de Ferrara", conta Andrea Pesaro, engenheiro aposentado de 80 anos que hoje vive em Milão, mas volta sempre à cidade natal, onde é o líder da pequena comunidade judaica local (de 80 pessoas).
Segundo ele, durante o auge, na Idade Média, cerca de dois mil judeus viviam em Ferrara, incluindo acadêmicos, médicos e editores. Porém, quando o reinado da Casa d'Este chegou ao fim, a Igreja começou sua ascensão, a perseguição antissemita se intensificou e eles foram confinados aos guetos, de 1627 até a emancipação, em 1859.
Vida judaica em Ferrara
"Os judeus vivem em Ferrara há mais de mil anos", afirma Pesaro, parado ao meu lado na frente da sinagoga da Via Mazzini, 95, situada no mesmo endereço desde 1603 e reformada muitas e muitas vezes desde então. Dessa vez os reparos são para reverter os danos causados pelo terremoto de 2012. O prédio é simples, de tijolos vermelhos, quase indistinguível dos outros, com exceção das duas placas próximas ao arco da entrada, homenageando as vítimas locais do Holocausto. Lá dentro, há duas sinagogas: a maior, Asquenaz, com seu teto abobadado, múltiplos candelabros e desenhos em cores fortes nas paredes, contrasta com os bancos simples, de madeira escura, e a arca da Torá.
Uma volta pelo antigo gueto com Pesaro oferece um vislumbre comovente de uma época distante. A Via Mazzini, que era a rua principal do gueto, hoje está cheia de cafés e lojas, movimentada e repleta de ciclistas seguindo rumo à praça do bairro histórico, dominada pela catedral e pelo castelo cercado por fossos. A vida judaica é invisível a todos, menos aos pedestres mais atentos.
Duas ruazinhas estreitas de paralelepípedos, ao lado da Via Mazzini, formam o centro mais reconhecível do gueto. Seguimos por uma delas, a Via Vignatagliata, enquanto Pesaro aponta os prédios que já abrigaram a padaria matzo (no nº 49) e a escola judaica (nº 79), que inchou tremendamente depois que os judeus foram impedidos de frequentar as escolas públicas pelas leis raciais de 1938. À esquerda há uma pracinha, a Piazzetta Isacco Lampronti, que ganhou o nome de um rabino, estudioso e físico famoso do século XVIII. À noite, porém, quando as vielas sinuosas parecem melancólicas sob as luzes pálidas, é fácil imaginar como foi aquela época sombria.
O cemitério judeu, fora do gueto, é impressionante, mesmo que apenas por sua área e pelos gramados extensos, sem lápides. Quando pergunto a Pesaro onde foram parar as campas, ele explica que o mármore e as pedras foram retirados durante a Inquisição, no século XVIII, época em que parte do material também foi usada para erguer os dois pilares que ladeiam a Prefeitura, na frente da catedral.
O cemitério atrai muitos visitantes, italianos e estrangeiros, principalmente para prestarem homenagens a Giorgio Bassani, o famoso escritor de Ferrara, mais conhecido pelo romance "O Jardim dos Finzi-Contini". Uma lápide de bronze inclinada, com uma face dentada que trespassa a base de pedra, marca seu túmulo, isolado. O livro, que mais tarde foi transformado em filme de mesmo nome, conta a história de uma família judaica rica que tem de enfrentar as leis raciais de 1938 e está prestes a ser engolfada pelo Holocausto. É fonte de pesar para Pesaro e outros membros da comunidade, que acham que Bassani ofendeu sua família, na qual o livro parece se basear, retratando-a, assim como a outros judeus de Ferrara, desligados da realidade do fascismo e de seu destino iminente.
Um museu envolvente
O museu é uma instituição pública, com verba estatal, instaurado pelo Parlamento italiano, em 2003. Originalmente concebido como um museu do Holocausto, sua missão foi alterada mais tarde para incluir a história e a herança dos judeus italianos. Foi inaugurado em treze de dezembro de 2017, ocupando dois dos antigos prédios da prisão, reformados e projetados por uma equipe internacional de Milão. Quatro novos edifícios, desenhados para dar a impressão de serem cinco, inspirados nos livros da Torá, devem ser erguidos, de modo que, quando de sua conclusão, em 2021, o museu terá uma área de quase 9.300 m², a um custo estimado de US$ 50 milhões.
Na entrada, o visitante é estimulado a assistir a um vídeo de 24 minutos (em inglês e italiano) que conta a história dos judeus italianos por meio de relatos individuais – um escravo deportado de Jerusalém para Roma no primeiro século, um estudioso da Idade Média que goza de status privilegiado, e uma garotinha de 1938, forçada a abandonar a escola por causa das leis raciais. A seguir, uma curta caminhada leva ao segundo prédio, atravessando um jardim educativo no qual se aprendem as leis da dieta judaica.
A mostra "Os Primeiros Mil Anos" está focada basicamente em Roma e nas regiões meridionais – Sicília, Puglia, Campania, Calábria –, onde os judeus se estabeleceram durante o primeiro milênio. Depois de passar pela réplica do Arco de Tito, em homenagem à vitória de Roma sobre Jerusalém, que mostra os soldados carregando a menorá de sete braços, o visitante se depara com um espaço amplo e bem iluminado onde se encontram artefatos originais e réplicas de gravuras, amuletos, anéis, selos e lâmpadas a óleo com símbolos judaicos, manuscritos medievais, alguns concedidos permanentemente por outros museus italianos. Há câmaras completas simulando as catacumbas judaicas em Roma, as paredes enfeitadas com afrescos retratando menorás, outros símbolos religiosos e letras hebraicas. "As catacumbas judaicas em Roma se revelaram verdadeiros tesouros que ampliaram nosso conhecimento dos judeus na Era Imperial, cerca de 40 mil pessoas", informa Della Seta.
A disposição é temática tanto quanto cronológica, abordando a dispersão dos judeus pela Península Itálica, a relação entre judeus e cristãos, a contribuição da ciência e dos estudos judeus à civilização mais ampla. Os monitores estrategicamente dispostos mostram vídeos com historiadores, arqueólogos e rabinos explicando suas escolhas de artefatos ou eventos históricos.
O que a exibição nos dois andares revela é a amplitude e a tenacidade da vida judaica ao longo dos milênios. A Península Itálica foi testemunha de conquistadores em série – romanos, godos, bizantinos, lombardos e muçulmanos –, todos já desaparecidos. Entretanto, a presença contínua é a dos judeus, arraigados à sua identidade e civilização, apesar de todos os desafios seríssimos à sua sobrevivência. Há cerca de trinta mil deles na Itália hoje em dia, a maioria em Roma e Milão, de acordo com a União de Comunidades Judaicas Italianas.
"A missão do museu é promover o diálogo, a compreensão e a convivência. O MEIS conta a história de uma minoria que se integrou à sociedade italiana e, ao mesmo tempo, conseguiu manter uma identidade própria, tanto cultural como religiosa, sem ser assimilada. É realmente um modelo, um ponto de referência para os italianos e, de forma mais geral, para as sociedades ocidentais atuais", afirma Dario Disegni, diretor do museu.
É uma mensagem, numa época em que a capacidade da Itália e de outros países europeus está sendo testada por uma nova onda de imigrantes e o aumento da intolerância, que pode render ao MEIS uma repercussão e um propósito mais amplos do que aqueles normalmente associados a museus de história.
(Harry D. Wall escreve com frequência e produz filmes sobre a cultura e a herança judaicas ao redor do mundo.)
Por Harry D. Wall