Esta história deveria começar de outro jeito, mas Rami Malek roubou minha frase. Depois de passar mais de uma hora com ele no espaço da Fox Studios, tive que perguntar por que parecia tão inquieto no início da entrevista – contorcendo-se, abraçando a si mesmo, cruzando e descruzando as pernas, coçando os braços e se sacudindo com uma frequência alarmante que sugeria agitação nervosa ou excesso de cafeína. O que tinha sido aquilo?
Malek disse que sua energia é típica e tão intensa que uma vez levou uma pessoa a perguntar se estava se sentindo bem.
- Tenho lá as minhas firulas - comenta, com um sorriso torto. - Rami Malek não consegue ficar parado - diz, com voz exageradamente retumbante.
Não seria a melhor introdução à sua história, mas teria sido real, principalmente porque ele se mostrou relutante em falar de si mesmo durante nosso encontro.
Eu bem que tentei. Tendo nascido em uma família copta e estudado em escola católica, Malek ainda era religioso?
- É uma questão muito pessoal - ele saiu pela tangente. Como costuma relaxar ao longo da produção de Mr. Robot, no qual interpreta Elliot Alderson, o protagonista paranoico?
- É muito pessoal! - exclamou o ator de 37 anos , revelando apenas que se livra do personagem "de um jeito bem particular".
Até que, por fim, oferece uma nesguinha de exposição. Malek explica que seu apreço pela privacidade, que sempre foi grande, ganhou força renovada depois de interpretar Freddie Mercury – o vocalista bombástico e explicitamente visceral do Queen, morto devido a uma pneumonia decorrente da Aids, em 1991 –, em Bohemian Rhapsody, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (1º de novembro).
- É bom poder ter privacidade, discrição; ser um pouco anônimo. É bem coisa do Freddie - diz.
Como interpretar o lendário cantor
Freddie Mercury, discreto? No palco mais parecia um galo vaidoso com uma voz majestosa; fora dele, era um bom vivant espirituoso que chegou a dizer a um repórter que um de seus passatempos favoritos era "fazer muito sexo".
Porém, ao estudar o cantor, Malek concluiu que Freddie, que é como se refere ao cantor/personagem, dominava a arte da autodefesa verbal, nunca dando uma vírgula de informação a mais do que lhe interessava, por mais que fosse pressionado.
- O que estava ali na sua frente, naquele momento, era o que você teria. Quem decidia como seria o papo era ele", conclui Malek.
Bohemian Rhapsody chega às telas depois de uma década de brigas internas e mudanças nas escolhas do elenco. Primeiro, Sacha Baron Cohen foi cogitado para ser o astro – e embora nenhuma cena tivesse sido rodada, o ator afirmou mais tarde que tinha sido dispensado porque a banda quis amenizar o hedonismo de Mercury, o que levou o guitarrista da banda, Brian May, a chamá-lo de "babaca". Aí veio a notícia de que Ben Whishaw estava no projeto, mas nada foi confirmado.
O roteiro foi escrito por um nome de prestígio, (Peter Morgan, de A Rainha e Frost/Nixon), reescrito por outro (Anthony McCarten, de A Teoria de Tudo e O Destino de Uma Nação) e laboriosamente retrabalhado.
- Por isso é que demorou tanto para ser realizado - comentou Graham King, um dos produtores.
Dexter Fletcher foi cogitado para dirigir, mas desistiu da empreitada. Bryan Singer assumiu, mas foi demitido no fim do ano passado, faltando poucas semanas para o término das filmagens, por simplesmente não aparecer no set. (Mais tarde alegou que estava cuidando de um dos pais, que estava doente.) Além disso, ele e Malek já tinham discutido algumas vezes, embora o ator desconverse.
- Foram diferenças artísticas - resume.
Já King, ao ser questionado, assume um ar zombeteiro:
- A tensão quando se faz um filme desse porte é inevitável.
Fletcher acabou dirigindo a última fase da produção, mas, de acordo com as regras do sindicato (DGA), não pode ter o nome nos créditos.
A reação dos trailers iniciais mostrou que o falatório em relação ao longa não ia acabar tão cedo. Visões do corpo sinuoso de Mercury, encarnado por Malek, agregado à sua voz poderosa, levaram muitos fãs às lágrimas, enquanto outros temiam que sua homossexualidade – nunca assumida por Mercury publicamente – pudesse ter sido simplesmente "limada".
- Abordamos tudo. Esse é outro aspecto por que nosso trabalho é tão bom. Não acho que tenha nada de apelativo ou indecente - diz.
Expectativa do ator
De qualquer forma, o filme vai estrear sob uma grande expectativa, sendo que grande parte dela recai sob os ombros de Malek, que teve que lidar com conflitos próprios antes de mergulhar de cabeça no papel.
Filho de imigrantes egípcios e criado em Los Angeles, o astro foi protegido e ficou alheio a Hollywood que fervia além das Montanhas Santa Monica. Seus pais sonhavam em vê-lo advogado – até que um professor do ensino médio lhe disse que tinha mais jeito para a interpretação dramática do que para a disputa verbal.
Depois de fazer o curso de Teatro na Universidade de Evansville, em Indiana, começou a conseguir papéis – uma participação em Gilmore Girls, uma ponta como faraó em Uma Noite no Museu e como terapeuta no sucesso independente Temporário 12. Fez também alguns terroristas médio-orientais até não suportar mais o estereótipo.
A perspectiva de encarnar Mercury deixou Malek eufórico, mas também levantou todo tipo de dúvida. Afinal, sempre achara incrivelmente ingênuo quem achava que poderia dar vida a uma pessoa real na tela.
- Por que você haveria de querer alterar a percepção de um ídolo? - ele começou a se perguntar.
E decidiu que o faria para contar detalhes pouco divulgados da história de Mercury – a timidez, a luta para encontrar a identidade própria, a solidão doída – e "apresentá-lo" para a geração mais nova, assim como a banda que está por trás de canções como We Will Rock You, que ainda ecoam nos estádios do mundo inteiro.
É claro que o papel implicava em um risco enorme; filmes biográficos ruins convidam a um tipo particularmente nocivo de satisfação com o fracasso alheio.
- Eu sabia muito bem que podia dar muito errado, que minha carreira poderia ir para o buraco se não saísse bom - revela.
Só que também era a oportunidade com que todo ator sonha. Ele sabia que tinha que aproveitá-la e dar o melhor de si. E, para isso, teria que adquirir dentes novos.
Mercury nasceu Farrokh Bulsara em uma família parse, em Zanzibar, e estudou em um colégio interno na Índia. Seus colegas de classe o apelidaram de Dentuço por causa dos quatro dentes a mais que tinha na arcada superior e que faziam com que se tornasse extremamente saliente – mas, segundo acreditava, dava à sua voz uma ressonância extra.
Para assumir a semelhança física com Mercury, Malek recebeu dos figurinistas uma dentadura que levava a todo lugar em um invólucro plástico e colocava à noite, para praticar. Além disso, foi a Londres e convenceu King a pagar por um professor de dialetos e um coach de movimentos que o fez estudar as inspirações do exibicionismo mercuryano: Jimi Hendrix, David Bowie, Aretha Franklin e Liza Minnelli em Cabaré.
- Às vezes era mais útil assistir a Liza direto, e não ao Freddie. Era nela que encontrava a inspiração e a origem dos movimentos - conta.
Tudo isso aconteceu antes mesmo de a produção ser aprovada. Malek queria estar preparado caso o projeto fosse adiante, o que acabou provando ser uma sábia decisão. A primeira cena gravada foi a reprodução da participação do Queen no Live Aid, em 1985, considerada uma das melhores apresentações da história do rock. Para a cantoria, a voz de Malek foi mixada com a de Mercury e do cantor canadense Marc Martel.
- Ninguém quer me ouvir cantar - garante o ator, mas foi exatamente o que teve que fazer, a plenos pulmões, na frente do elenco e da equipe técnica, em todas as cenas de palco.
O desempenho de Malek deixou os outros integrantes do Queen atônitos, pois acharam que o ator não só retratou Mercury, como o incorporou.
- Às vezes dava para esquecer que era o Rami - confessou Brian May, por e-mail.
Ao ver o filme, eu também consegui esquecer em certas passagens – e me vi inundada pela nostalgia, os olhos marejados com as cenas de Malek no palco. E também me vi pedindo a ele que fizesse um gesto, uma pose, qualquer coisa que lembrasse o cantor, coisa que jamais havia pedido para qualquer astro. E é claro que eu não devia ter ficado surpresa quando se recusou.
- Nunca me dediquei tão intensamente a nada na vida como a esse papel, mas não posso alimentá-lo para o resto da vida, né? - conclui.
Por Cara Buckley