As grandes exposições de arte do circuito internacional por vezes coincidem. Três dos mais importantes eventos estão ocorrendo ao mesmo tempo na Itália, na Alemanha e na Grécia.
O momento é especial porque só é possível a cada 10 anos, por um motivo matemático: a Bienal de Veneza é realizada a cada dois anos; a Documenta de Kassel, a cada cinco (pela primeira vez também em Atenas); e o Skulptur Projekte Münster, a cada 10.
Com perfis próprios, as três mostras de arte têm forte influência no cenário das megaexposições, do qual fazem parte bienais como as de São Paulo e do Mercosul, que terão edições em 2018. Enquanto reverberam no universo artístico apontando tendências, os eventos europeus incrementam o turismo e a economia onde se realizam. Seus históricos são resultado de planejamento a longo prazo e continuidade de políticas culturais, com investimentos públicos e privados.
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À exceção de Veneza, sempre movimentada pelo turismo, Kassel e Münster entram em festa com o afluxo de visitantes atraídos por suas mostras. Os personagens do mundo da arte comparecem em peso, mas priorizam as aberturas. O que se vê nos meses seguintes é um grande movimento de pessoas das mais diferentes origens, que viajam para apreciar arte. A temporada chegou só à metade, pois Veneza segue até 26 de novembro; Kassel, até 17 de setembro (a etapa de Atenas terminou em 16 de julho); e Münster, até 1º de outubro.
Veneza
Tradicional encontro de nações
Criada em 1895, a Bienal de Veneza é a mais antiga do mundo. A cidade tem seu passado relacionado ao histórico de importante centro naval e comercial da Europa. Posteriormente, virou ilha de ricos em busca de refúgio, e que se aliariam ao poder local e a intelectuais dando origem ao evento. Com o tempo, a mostra teve ampliado seu caráter internacional, passando a organizar edições de arquitetura, cinema, dança, música e teatro.
O evento se concentra em lugares históricos da cidade que não têm carros e cujas maiores vias são canais trafegáveis só de barco. Os principais endereços são acessíveis a pé: a Arsenale, antiga base militar e fábrica de navios, onde fica a exposição principal; e o Giardini, grande parque com jardins criados por Napoleão Bonaparte, onde estão os chamados pavilhões nacionais. Ambos são cartões-postais de Veneza.
Nesta 57ª edição, intitulada Viva Arte Viva, a curadora francesa Cristine Macel quis colocar os artistas e suas práticas no centro da mais tradicional mostra de arte do planeta, selecionando 120 nomes. Acabou por enfatizar a criação manual, resultando um tanto literal com o excesso de obras feitas de linhas, fios, costuras e tramas. A curadora anunciou uma bienal menos politizada, mas nem tudo se manteve sob seu controle.
Na abertura, em maio, o trabalho de Olafur Eliasson despertou polêmica. O islandês-dinamarquês montou uma oficina de fabricação de suportes artesanais para lâmpadas. Ocorre que as pessoas trabalhando são imigrantes, o que gerou controvérsia entre a ajuda humanitária e a exploração da miséria. Se o trabalho nasce bem-intencionado, já que as vendas são revertidas para os refugiados, torna-se questionável em seu resultado, por parecer um zoológico perverso oferecido pelo mundo da arte a seus visitantes.
O brasileiro Ernesto Neto também foi alvo de polêmica. Ele apresenta uma grande instalação, espécie de tenda tramada, fruto de pesquisas com indígenas. O trabalho oferece um local de encontro e conhecimento, pois o público é convidado a entrar, conversar, tocar tambores e ler histórias das culturas da Amazônia. Na abertura, o artista levou índios para uma performance simulando uma cerimônia espiritual, no que foi criticado por promover um show de exploração do exotismo e da colonização.
Outros brasileiros na mostra principal são Ayrson Heráclito, com um poético vídeo sobre a ritualística religiosa afro-brasileira, e Erika Verzutti, com uma grande escultura, prejudicada pelo diminuto espaço onde foi colocada. Nome referencial da arte brasileira dos anos 1970, Paulo Bruscky fez uma performance na abertura. Transportou uma série de caixas de madeira vazias, nas quais se leem "performance", "priority", "fragile" e "maritime mail". Pautado pela ironia, o trabalho traz um comentário sobre o esvaziamento estético e o aspecto mercadológico da arte, num lugar onde só se chega pela água.
As caixas podem ser vistas no Giardini.
A marca da Bienal de Veneza sempre foi reunir a arte de diversos países, como um grande encontro das nações. A mostra italiana mantém o modelo de pavilhões e espaços nacionais – que outras bienais vêm abandonando –, com mais de 80 países.
O pavilhão do Brasil levou Cinthia Marcelle, que mostra Chão de Caça, instalação com a qual interviu no espaço do prédio criando um piso inclinado, composto por uma extensa grade de metal, cravejada por pedras. O trabalho culmina com um vídeo de forte comentário sobre protestos, rebeliões e violência, seja nas ruas, nos presídios ou no campo, oferecendo uma contundente metáfora do aprisionamento da sociedade frente à crise política do país. Com a obra, o pavilhão do Brasil ganhou menção honrosa pela primeira vez – o Leão de Ouro foi para a Alemanha.
Kassel
Crise europeia e tom político
Se a Bienal de Veneza tentou evitar o tom político, a Documenta de Kassel foi na direção oposta. Ainda em 2014, o curador polonês Adam Szymczyk mudou-se para a Grécia. Nos preparativos, que envolveram edições de revistas e programações de rádio e TV locais, houve manifestações. As críticas citaram a falta de aproximação com o meio artístico local e a condição da Alemanha, grande responsável pelas políticas de austeridade dirigidas à crise econômica da Grécia e à questão dos refugiados que tentam entrar na União Europeia pelo país.
Szymczyk disse que escolheu Atenas por ser o berço da democracia e, ao mesmo, a capital de um país que representa o epicentro da crise da Europa. Intitulada Aprendendo desde Atenas, a mostra levou exposições e performances a mais de 40 lugares da cidade, entre museus, escolas, bibliotecas, praças e regiões históricas. Foi elogiada por ativar instituições em dificuldades com a crise, mas despertou críticas pelo caráter episódico e o legado efetivo deixado.
A Documenta se firmou como o mais influente evento das artes visuais por oferecer, a cada cinco anos, um panorama do que há de mais relevante na arte atual. Nesta edição, Szymczyk posicionou-se na contramão do mercado: fez resgates históricos e não priorizou estrelas do circuito. Boa parte dos 200 artistas, sendo 160 vivos, é pouco conhecida e vem do Leste Europeu, da Ásia e da África. Há poucos latinos e apenas um brasileiro, David Perlov (1930–2003), realizador de filmes artesanais que viveu em Israel.
A etapa de Kassel, a segunda etapa, aberta em junho, distribui-se em mais de 30 endereços. Há exposições nos tradicionais museus e instituições, além de obras nas ruas e em locais novos, como uma antiga estação de trem subterrânea. O único trabalho monumental é O Partenon dos Livros, que a argentina Marta Minujín está preenchendo com obras censuradas por ditaduras. É uma reedição do que apresentou em 1983, em Buenos Aires.
Tanto na Grécia como na Alemanha, muitas obras refletem causas políticas dos países dos artistas, tocando em temas como colonização, guerras, ditaduras, golpes e migrações. Há trabalhos que evocam o nazismo. Kassel foi base militar de Hitler – foi 80% destruída na II Guerra, com 10 mil mortos.
A Documenta foi criada em 1955 como parte da política de reparação. A reconstrução contou com mão de obra de imigrantes, sobretudo turcos. Morada dos irmãos Grimm, é hoje uma cidade multiétnica.
Münster
Arte pública na cidade das bikes
O tamanho de Kassel se assemelha ao de Münster, conhecida como a cidade alemã das bikes. É alugando uma bicicleta e pedalando pelas muitas ciclovias que o Skulptur Projekte convida a visitar as dezenas de obras em parques e instituições localizados no município. Em todo o mundo, o evento é um dos que melhor tiram proveito da relação entre a arte e os espaços urbanos.
O resultado não é apenas uma cidade repleta de trabalhos de grande porte de artistas importantes, mas que compreende a importância da arte pública na sensibilização das pessoas e na humanização do ambiente social. Tal consciência se manifesta em cidadania, uma vez que as obras não estão depredadas ou pichadas e passam por conservação.
Essa história começou em 1977, quando a cidade investiu na aproximação da arte contemporânea e seus moradores. A ideia era confrontar a população com esculturas em espaços ao ar livre. Hoje, o evento tem instalações e obras em espaços fechados, mas mantém seu caráter público. Esse perfil foi mantido por Kasper König, curador desde a primeira edição. Já na estreia, Münster recebeu artistas de peso da arte minimalista e conceitual, como Carl Andre, Joseph Beuys, Donald Judd, Richard Long, Bruce Nauman, Claes Oldenburg e Richard Serra. Ao longo desses 50 anos, tantos outros deixaram obras permanentes na cidade.
Aberta em junho, a quinta edição tem 35 artistas e duplas. Pelo menos duas obras estão entre as sensações da temporada. A turca Ayse Erkmen criou uma proposta participativa ao instalar uma passagem submersa no canal da cidade em que o público é convidado a colocar os pés na água e atravessar. Já o francês Pierre Huygue se apropriou de uma antiga pista de gelo, cortando frações do piso de concreto em alguns metros de profundidade. O visitante é convidado a andar por dentro dos caminhos abertos, em meio a trechos alagados, sons e diversos elementos.
Obra que também apela ao sensorial é a da brasileira Bárbara Wagner e do alemão Benjamin de Bruca. A dupla fez uma pesquisa sobre o Schlager, música eletropop alemã de pegada brega, e ocupou uma antiga discoteca de Münster. O lugar recebe o público com espaço ambientado, bar funcionando e a exibição de um filme realizado com estrelas desse gênero musical. Pelos aplausos vindos de alemães ao final da exibição, eles com certeza adoraram.