Há 70 anos, em 1947, era lançada na Argentina, com relativo sucesso, conforme reportagens da época, a primeira adaptação audiovisual de Erico Verissimo (1905 – 1975), Mirad los Lírios del Campo, filme dirigido por Ernesto Arancibia, roteirizado por Tulio Demicheli e Mariano Perla. O portenho Arancibia se consagrara por adaptar obras literárias. Havia filmado Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (Casa de Muñecas, 1943) e a novela argentina La Pícara Soñadora (1956), de Abel Cruz. O cineasta também adaptara A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, em La Mujer de las Camelias (1954). O longa que completa 70 anos, baseado no maior sucesso literário de Erico, pertence à chamada época de ouro do cinema argentino, período de significativos investimentos financeiros dos EUA em produções latino-americanas, sobretudo mexicanas, brasileiras e argentinas.
De acordo com a professora Maria da Glória Bordini, responsável pelo Acervo Literário de Erico Verissimo, a crítica do romance, à época do lançamento do livro, não foi positiva, o que talvez tenha dificultado uma possível adaptação brasileira. Só em 1980 uma versão televisiva foi exibida no horário das 18h na TV Globo, com Nívea Maria no papel da protagonista Olivia e Cláudio Marzo vivendo seu par romântico Eugênio. A produção foi dirigida por Herval Rossano.
Talvez a dúvida sobre os motivos de Olhai os Lírios do Campo não ter sido filmado no Brasil, assim como outras obras de Erico, possa estar associada ao desafio de propor uma releitura sem sofrer acusações de superficialidade e infidelidade, afinal, trata-se de um respeitável escritor. Entretanto, o fascinante nas adaptações cinematográficas é justamente o estímulo, a provocação de se propor uma recriação. A mudança do meio para narrar uma história (o audiovisual) conta não só com a palavra escrita, mas também com a falada, além da trilha sonora, imagens em movimento, atuação etc.
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Partindo desse pressuposto, a análise comparada de adaptações cinematográficas pode se beneficiar do princípio fundamental de que o livro e o filme são duas obras diferentes e independentes, porém, que atuam em um método intertextual que gera desdobramento de sentidos para ambas as obras. Do ponto de vista estético, o relevante é não tomar o original como medidor para determinar o valor da adaptação a priori, mas sim o próprio filme, em sua organização temática e formal exclusiva.
Já o livro, desde sua primeira edição em 1938, obteve e continua obtendo êxito de público no Brasil e no Exterior, alcançando mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos só no país. Naquele período, o fenômeno de aceitação da obra literária, adaptada para o meio audiovisual, deve ter ocorrido por uma combinação favorável da economia de mercado e progressivos avanços tecnológicos, própria da fase monopolista do capital no século 20. Como se sabe, os bens da indústria cultural dependem do desenvolvimento tecnológico e da formação de um mercado de consumo, o que é observável nos anos 1930 no Brasil e na Argentina. Falamos de um período identificado pelo chamado "cinema de lágrimas": Olhai os Lírios do Campo tem feição melodramática.
Erico Verissimo é tido como um dos maiores representantes da segunda fase do modernismo no sul do país. Os autores dessa fase, principalmente de origem nordestina, imprimem ao texto várias características regionais. Erico inovou ao privilegiar não o interior, e sim a vida urbana na cidade grande.
Em Olhai os Lírios do Campo, Porto Alegre é o cenário da narrativa, porém, é a representação da cidade que lhe confere universalidade. Na adaptação, uma possível Buenos Aires fica evidente. Por meio do longa argentino, do olhar do outro, podemos, como se fôssemos estrangeiros, nos ler dentro da obra adaptada. O personagem Eugênio, interpretado por Francisco de Paula, e Olívia, vivida por Silvana Roth, enquadravam-se num padrão de produção vigente.
O filme em preto e branco de Arancibia, assim como o romance, não poupa críticas ao acúmulo de riquezas e à consequente hipocrisia das relações sociais.
Como exemplificação de obras semelhantes, convém lembrar o romance urbano e patriarcal Senhora (1874), de José de Alencar. A obra, assim como Olhai os Lírios do Campo, aborda a compra de um marido (Fernando Seixas), o que permite inferir um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes, como o casamento por dinheiro.
Olhai os Lírios do Campo é o primeiro best-seller de autor brasileiro moderno, o que determinou o interesse internacional pelo Rio Grande do Sul. À década de 1930, quando o livro foi lançado, havia grandes transformações sociais, a ditadura de Getúlio Vargas, mudanças políticas, além do crescimento urbano. No filme, fica evidente a caracterização dessa fase, quando o enquadramento em uma cena mostra o sutil movimento de carros na Avenida 9 de Julho. Os costumes de até então, considerados conservadores, iam sendo substituídos por um frenesi de consumo e ascensão social, que o livro bem tematiza.
Nesse mundo em mudança, a voz de Olívia representaria uma posição do próprio autor, simbolizada na metáfora do título. Afinal, "Olhai os lírios no campo" é parte do Sermão da Montanha, relatado nos evangelhos de Mateus e Lucas da Bíblia Sagrada. Eugênio Fontes só compreende a mensagem de confiança no amor e na vida dedicada ao próximo, que lhe é transmitida por Olívia, no fim da narrativa.
Mirad los Lírios del Campo pode ser considerada hoje uma raridade, porque as imagens que narram a trama do livro revelam a história, a literatura, o comportamento social, político e econômico de um importante momento do Brasil e da América Latina. Seu resgate certamente não pode ficar somente na lembrança de sete décadas de seu aniversário.