Sob escrutínio público desde o ano passado, quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Boca Livre e a Câmara dos Deputados criou uma CPI, ambas buscando apurar possíveis irregularidades, a Lei Rouanet foi submetida a mudanças na semana passada com a publicação de uma Instrução Normativa do Ministério da Cultura (MinC).
Entre as novidades, estão medidas de transparência (acompanhamento da prestação de contas dos projetos em tempo real pelo Portal da Transparência), celeridade (autorização para captação de até 10% do valor do projeto na fase de admissibilidade), distribuição de recursos (limite de captação de R$ 10 milhões por projeto, exceto projetos de patrimônio, área museológica e planos anuais) e acessibilidade financeira (limite de R$ 150 para o valor médio de ingressos).
O documento também responde a uma crítica frequente à Lei Rouanet – a concentração de recursos no Sudeste – ao estabelecer benefícios para projetos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, como maior teto de captação por projeto (R$ 15 milhões) e maior limite para custos de divulgação (30%, enquanto nas demais regiões é de 20%).
Especialistas em incentivo à cultura ouvidos por ZH consideram a nova Instrução Normativa um avanço, mas apontam ressalvas. O advogado Fábio de Sá Cesnik, autor do livro Guia do Incentivo à Cultura, acredita que a intenção de fortalecer o controle sobre o uso dos recursos pode ter enrijecido a relação com os incentivadores. Ele se refere especificamente ao artigo 38, que veda "a adoção de práticas que configurem vantagem financeira ou material ao patrocinador ou doador". Cesnik exemplifica que uma produtora não poderá comprar passagens aéreas de uma companhia que seja sua patrocinadora, mesmo que ofereça os melhores preços:
– Esse engessamento pode afastar o patrocinador, que talvez prefira utilizar a Lei do Audiovisual, que não traz esse tipo de restrição.
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A gestora cultural da equipe da coordenação de projetos e captação da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, Adriana Mentz Martins, destaca como ponto positivo a possibilidade de um projeto captar parte dos recursos na fase de admissibilidade. Antes, era preciso aguardar a publicação da aprovação no Diário Oficial da União, processo que, segundo ela, poderia demorar de 90 a 120 dias. Adriana acredita, no entanto, que o Sul poderia ser contemplado com mais incentivos, assim como Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Embora seja a segunda região que mais capta no país, a proporção é de apenas 11,4% (o Sudeste fica com 79,7%).
– Parece que o Sul foi esquecido, pois nem é citado. E a diferença em relação ao Sudeste ainda é bem grande – diz.
Para Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, terceiro maior captador da Lei Rouanet em 2016, a instrução acerta ao sintetizar regras que precisavam ser consultadas em distintas fontes. Ele ressalva que esse deve ser um documento dinâmico, em melhoria constante:
– Uma curva de aprendizado se estabelecerá. O MinC deve ficar atento a ela. E aí aprofundar o que der certo e mudar o que não der.
As mudanças chegam num momento de crise. Com as torneiras dos patrocínios secas devido à recessão, instituições estão repensando suas estratégias, de olho na sustentabilidade a longo prazo. Ferramenta consolidada em países como os EUA, o endowment, ou fundo patrimonial, é um modelo segundo o qual só o rendimento de um investimento é usado, enquanto o montante principal segue intocado.
– Hoje, na Rouanet, pode-se captar verba para gastar, mas não para financiar uma poupança cultural. O endowment é importante porque as instituições ficam menos sujeitas a pressões de mercado – defende o cientista político Fernando Schuler, professor do Insper.
Schuler ressalta três empecilhos para a disseminação desse modelo. O primeiro é a aposta histórica em instituições culturais estatais, enquanto o endowment floresce em instituições privadas. Segundo: a vedação do uso de recursos de leis de incentivo à cultura para fundos de endowment. Por último, há a questão cultural: o Brasil, segundo Schuler, não tem tradição de doações de pessoas físicas.
Mas instituições culturais privadas estão começando a enfrentar esses desafios. Em Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo estuda criar um fundo de endowment. Em fase mais avançada, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) pretende começar a captar para o seu em maio.
A lógica desse recurso não é ser necessariamente a única fonte de financiamento. Juliana Sá, diretora jurídica e de relações institucionais do Masp, lembra que o Museum of Fine Arts, de Houston, financia 53% de suas despesas com um fundo de US$ 1,1 bilhão.
– Imagine a tranquilidade que haveria se as instituições culturais brasileiras pudessem se enxergar daqui a 50 anos – diz Juliana.
O que muda na Lei Rouanet
- Os projetos poderão captar até 10% do valor aprovado na fase de admissibilidade. Antes, era preciso aguardar a aprovação final para iniciar a captação. Os pareceres priorizarão a análise de projetos com efetiva viabilidade econômica.
- A movimentação dos recursos dos projetos poderá ser acompanhada em tempo real por meio do Portal da Transparência.
- Haverá limite de captação de R$ 10 milhões por projeto, exceto projetos de patrimônio, área museológica e planos anuais. Antes, não havia teto por projeto.
- O valor médio dos ingressos deve ser de, no máximo, R$ 150, o equivalente a três vales-cultura.
- Projetos realizados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste passam a ter benefícios, como teto maior de captação por projeto (R$ 15 milhões) e limite maior para custos de divulgação (30%, enquanto no Sul e Sudeste é de 20%).
- Os limites de captação por proponente passam a ser R$ 700 mil (MEI e pessoa física), R$ 5 milhões (demais empresários individuais) e R$ 40 milhões (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, Sociedades Limitadas e demais pessoas jurídicas).