Jogados aos cinemas em poucas salas e horários, os documentários brasileiros são, por natureza (dos próprios filmes ou do circuito exibidor), filmes de nicho. São os casos de dois longas-metragens em cartaz em Porto Alegre – Do pó da terra e A loucura entre nós. O primeiro, em exibição em uma única sessão diária no Espaço Itaú, visita o Vale do Jequitinhonha para apresentar a vida (e as obras) das artesãs locais. O segundo, que pode ser visto no CineBancários, "invade" um hospital psiquiátrico para registrar a rotina dos internos, particularmente duas mulheres que estão em processo de reinserção social.
Leia mais sobre ambos a seguir.
As mulheres do barro
O Vale do Jequitinhonha fica em Minas Gerais, mas tem características do sertão nordestino – geográficas e sociais. A região pertencia à Bahia, porém, acabou incorporada a Minas após a descoberta de diamantes no solo.
Já esteve associada a rótulos e preconceitos diversos, nenhum deles
ressaltando a produção artesanal do lugar. É essa faceta menos conhecida do Vale que o fotógrafo Maurício Nahas escolheu para retratar em seu primeiro documentário de longa-metragem, Do pó da terra (Brasil, 2016, 79min,
em cartaz diariamente, às 13h, no Espaço Itaú).
Trata-se de uma incursão emocionada e generosa pelo universo de produção artística das mulheres da região. Com belas imagens sobretudo da terra que, transformada em barro, vira matéria-prima do trabalho das artesãs, apresenta grandes personagens e suas obsessões – a recriação de figuras humanas com traços fortes, assessórios "de luxo" e roupas bonitas, não raramente usadas em rituais familiares, como batizados e casamentos.
O passado da região aparece mais nas marcas carregadas pelas próprias moradoras do que em explicações didáticas "de fora" – dos autores do filme.
O roteirista Di Moretti soube amarrar os depoimentos, revelando aos poucos como a atividade escultórica representa uma espécie de outro lado da dura vida de quem já foi explorado pela ganância e tem de conviver com a pobreza.
Há um excesso em Do pó da terra: a música. A trilha sonora ressalta o caráter dramático daquelas figuras (as criadoras e as criaturas), mas, deve-se admitir diante da riqueza do que se vê, com tamanha intensidade, não se faz necessária.
As mulheres do hospital
Há diversas sequências perturbadoras em A loucura entre nós (Brasil, 2015, 76min, em cartaz no CineBancários, às 15h e às 19h, exceto às segundas-feiras). Uma delas logo no início do filme, quando a câmera fixa da diretora Fernanda Fontes Vareille se posiciona à porta de um hospital psiquiátrico de Salvador, na Bahia. Trata-se de uma porta vazada, com barras de ferro por entre as quais o espectador observa os internos. Logo se vê que muitos estão alterados – pelas medicações que tomam ou pela própria natureza de sua condição.
Tudo fica ainda mais impressionante quando a câmera adentra o local. No canto da imagem, percebe-se que uma mulher puxa o braço da cineasta, chamando-a pelo nome e conduzindo seu passeio. O espectador se sente dentro do hospital. E, consequentemente, pode avaliar o ambiente de reclusão dos pacientes.
Mesmo que os enfermeiros sejam atenciosos, a impressão é de que aquele lugar serve mais a quem está do lado de fora – e assim pode "se livrar" dos doentes no convívio social – do que para o tratamento de quem está preso lá dentro. Quando a câmera volta a registrar a movimentação dos internos através da porta de entrada, que é cadeada e vigiada, a sensação, de fato, é a de que se trata de uma prisão. "Há muita dor porque todos foram abandonados pelas suas famílias", diz uma das duas internas que estão em processo de reinserção
social e são acompanhadas pela narrativa. Seu depoimento só não é mais revelador do sua expressão de tristeza.
A loucura entre nós é um filme difícil porque escancara essa tristeza. Ao se construir na dicotomia entre o que há dentro e fora do hospital, deixa claro: trata-se de um lamento extensivo a toda a sociedade. A todos nós.