Numa terra como a nossa tão pobre em livros sobre música de vanguarda, e ainda mais sobre música brasileira, o Diálogo com cartas de Jocy de Oliveira – que vai bem por esses caminhos – é coisa que se lê como se fosse um romance. Vanguarda significa aqueles compositores de meados do século passado, Berio, Stockhausen, John Cage, Boulez... que já não estão mais conosco. Pois antes de se fazer compositora, Jocy de Oliveira foi pianista que se dedicou a esse repertório cheio de arestas e assim girou o mundo.
Um livro anterior, Dias e caminhos – Seus mapas e partituras, ensaiou os temas do livro de agora, mas sem o requinte gráfico de hoje. Diálogo com cartas é um livro de mesa, pesado e cheio de fotos e fontes. De vez em quando, surgem até envelopes entre as páginas e deles se pode tirar alguma das cartas que Jocy de Oliveira comenta no seu texto, recuperando as memórias quase apagadas da vanguarda musical no Brasil e do Brasil.
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O que mais surpreende é o tom confessional do livro, o despudor em trilhar episódios que talvez sejam dolorosos de recuperar, mas que são recuperados mesmo assim. Há muitos retratos falados e três são especiais – o do velho Stravinsky, de quem Jocy tocou algumas das peças mais intratáveis com regência do próprio compositor. O de Cláudio Santoro, brasileiro de obra imensa, mas hoje injustamente despachado para o segundo plano das lembranças e dos concertos.
E o de Luciano Berio, num capítulo que não é agradável de ler, pelo que é confidenciado ao leitor, as histórias que são retomadas, as aventuras que – enfim – não chegaram a lugar nenhum. É estranho que nenhum biógrafo de Berio tenha listado entre suas obras a música eletroacústica que ele fez para Apague meu spotlight, o drama eletrônico de Jocy de Oliveira de 1961 com Fernando Montenegro no papel principal. Isso diz muito sobre a auto-importância da vanguarda europeia e o seu desdém às culturas que lhe pareçam periféricas.
É exatamente disso que Diálogo com cartas fala.
Ali está um Brasil que não se conhece e do qual, se não se fala, logo se esquece.