Encerrada no domingo com a exibição de Garoto, mais novo longa de Júlio Bressane, a terceira edição do Diálogo de Cinema trouxe a Porto Alegre um panorama de alguns dos bons curtas-metragens realizados no Brasil nos últimos meses. Títulos internacionais premiados também foram selecionados pelas equipes da Avante e da Sofá Verde Filmes, promotores do festival. Talvez o grande destaque, no entanto, tenha sido a produção gaúcha.
O bom Sesmaria, realizado por alunos como projeto de conclusão de curso na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), levou o principal prêmio na Mostra Cercanias, dedicada ao cinema local (veja a lista completa dos vencedores abaixo). O filme é surpreendente não apenas pelo final, que surge após 20 minutos de registro do cotidiano pacato de um agricultor aposentado e sua mulher (interpretados por familiares da diretora Gabriela Richter Lamas).
Mas, sobretudo, pelo domínio das ferramentas técnicas – há excessos na construção da narrativa intimista sobre a crise do casal, todos sobrepujados pela surpreendente maturidade da direção de atores e a precisão da montagem, assinada pela própria diretora. Vale lembrar que Sesmaria já ganhara o Festival da Fronteira, realizado em Bagé, e a Mostra Municípios do Goiânia Curtas.
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Entre os dias, de Giovani Borba, e Desenredo, de Felipe Diniz, têm qualidades semelhantes. O primeiro é uma ficção sobre a distância de um homem de seu filho. O segundo, um documentário que acompanha integrantes de uma escola de samba. Ambos são marcados pela direção segura e a construção narrativa meticulosa, que vai aos poucos revelando o objetivo de seus autores. As sutilezas do roteiro, sobretudo de Entre os dias, são ressaltadas pela ótima montagem – nos dois casos assinada por Bruno Carboni, diretor de uma preciosidade recente do curta-metragem gaúcho, a mistura de ficção com documentário O teto sobre nós (2015), rodada na Ocupação Saraí, em Porto Alegre, e premiada no Festival de Gramado e no recém-finalizado Cine Ceará, em Fortaleza.
Tanto Entre os dias quanto Desenredo saíram sem prêmios do Diálogo de Cinema, assim como outro destaque da safra gaúcha recente – Bruxa de fábrica, de Jonas Costa, jovem diretor que integrou a equipe do superpremiado Se essa lua fosse minha (2014), curta realizado coletivamente por alunos da Unisinos. São todos filmes de qualidade, que atestam a força da seleção realizada pelos curadores do evento. Foram eles que selecionaram Ruby.
Premiado na Mostra Cercanias e também na Diálogo (que apresenta os títulos nacionais), além de ter vencido um dos dois prêmios da crítica (entregues pela Associação dos Críticos do RS, a Accirs), Ruby é um ensaio poético sobre o isolamento de um artista em algum local incerto entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. O visual impressionista e a câmera às vezes beirando o invasivo, noutras fugidia (o momento da grande revelação é um primor neste sentido)
são dois de seus trunfos. O principal é o próprio dispositivo: o trio de diretores, Guilherme Soster, Luciano Scherer e Jorge Loureiro, todos ligados às artes visuais, apropria-se da linguagem documental para construir uma narrativa que, no fundo, é ficcional. Entretanto, convém assisti-lo sem saber ao certo quem é o personagem-título – o impacto da fruição tem muito a ver com a própria descoberta por parte do espectador.
Ruby foi um dos grandes filmes deste 3º Diálogo de Cinema. Entre os outros estão os minimalistas Solón, de Clarissa Campolina, e A história de Abraim, de Otávio Cury, ambos lembrados na premiação (veja abaixo), assim como História de uma pena, de Leonardo Mouramateus. Este último, um dos melhores curtas brasileiros dos últimos anos, poderia ter ganhado mais do que uma láurea de contribuição artística. Sua história complexa, que começa com um professor (vivido pelo cineasta Caetano Gotardo) à espera dos alunos atrasados (entre
eles está o ator Jesuíta Barbosa), aborda uma série de temas em torno da incomunicabilidade advinda do choque cultural entre o mestre forasteiro e os jovens desinteressados no que ele tem a oferecer – uma aula sobre poesia.
Também nascido de um projeto de conclusão de um curso superior (na Universidade Federal do Ceará), História de uma pena tem narrativa linear, porém cheia de quebras habilmente trabalhadas graças ao bom uso do tempo cênico. Há um humor muitas vezes discreto na abordagem daquele embate, mesmo quando este se torna agressivo – e os silêncios tanto dos atores quanto das transições entre uma sequência e outra são fundamentais para que essa atmosfera seja totalmente compreendida pelo espectador. Não deixa de ser curioso que outros títulos da mesma mostra, notadamente aqueles de narrativa mais lenta, tenham demonstrado problemas exatamente nesse aspecto.
Por fim, destaque para o interessante A casa sem separação e os ótimos A outra margem (os dois dirigidos por Nathália Tereza) e A vez de matar, a vez de morrer (de Giovani Barros). Em seu painel das pulsões e das angústias de jovens adultos no ambiente rural do Mato Grosso do Sul, os dois últimos visitam um contexto recheado de contrastes e, por isso, muito significativo no retrato de um Brasil, para um usar um clichê da hora, profundo. A vez de matar, a vez de morrer potencializa essa abordagem do contraditório à medida que usa códigos do faroeste para falar de vingança e virilidade em um universo no qual se inserem as relações homossexuais.
Surpreendente. E impactante. Como o próprio Diálogo de Cinema.
OS PREMIADOS
Mostra Cercanias (filmes gaúchos)
_Melhor filme: Sesmaria, de Gabriela Richter Lamas
_Contribuição artística 1: Edgar Richter, Lorena Richter e a comunidade de São Lourenço do Sul, pelo filme Sesmaria
_Contribuição artística 2: Ruby, de Guilherme Soster, Luciano Scherer e Jorge Loureiro
_Contribuição artística 3: equipe de A pele de vênus, de Julia Sondermann
_Menção honrosa: Ne pas projeter, de Cristian Verardi
_Melhor filme pelo júri popular: Ne pas projeter, de Cristian Verardi
_Prêmio da crítica: Ruby
Mostra Diálogo (filmes nacionais)
_Melhor filme: Solón, de Clarissa Campolina
_Contribuição artística 1: Luciano Scherer, de Ruby
_Contribuição artística 2: elenco e roteiro de História de uma pena, de Leonardo Mouramateus
_Contribuição artística 3: A vez de matar, a vez de morrer, de Giovani Barros
_Menção honrosa: Horror, de Leonardo Bomfim
_Melhor filme pelo júri popular: Ruby
_Prêmio da crítica: A história de Abraim, de Otávio Cury
Mostra internacional
_Melhor filme pelo júri popular: O retorno de um homem, de Mahdi Fleifel.