Existe um tanto de romantismo e um pouco de verdade em associar uma obra-prima a um gênio criador excêntrico, visionário e, não raro, com parafusos a menos soltando sua imaginação para fazer o que ninguém fez antes. Nesta segunda-feira, completam-se 50 anos do lançamento de um desses trabalhos que definem o antes e o depois dele: Pet Sounds, disco creditado à banda americana The Beach Boys mas que, a rigor, formatou-se na cabeça de seu líder, Brian Wilson.
As 13 faixas do álbum apresentado em 16 de maio de 1966 promoveram uma guinada não apenas na carreira do grupo – até então associado à surf music que embalava a ensolarada Califórnia. Pet Sounds apontou o caminho da experimentação sonora no estúdio, da desestruturação de harmonia e melodia, da colagem de ruídos, da busca por instrumentos e efeitos até então estranhos à música pop.
Wilson teve como inspiração para Pet Sounds o LP Rubber Soul, lançado pelos Beatles em dezembro de 1965. Não apenas repetir as criativas inovações mostradas pelos britânicos, mas superá-los na corrida pela evolução e elevação da música pop virou sua obsessão. Ali, Wilson percebeu que não queria mais juntar um punhado de canções alegrinhas falando de praia, namoros, carros e garotas bronzeadas que tocavam sem parar nas rádios. Pensava em um conceito que amarrasse, desse unidade a uma proposta musical única. Quis transcender a efemeridade do pop para criar uma obra de arte perene.
E conseguiu, assumindo um alto custo emocional e físico. Ele convenceu os Beach Boys – completados por seus irmãos Dennis (1944 – 1983) e Carl (1946 – 1998), o primo Mike Love e o amigo Alan Jardine – a partirem sem ele para uma turnê pelo Japão. Queria ficar enfurnado no estúdio com os tarimbados músicos – entre eles a baixista Carol Kayer, o guitarrista Barney Kessel e o baterista Hal Blaine – que buscou para ajudá-lo a erguer as complexas e inusitadas idéias que tinha plenamente organizadas na cabeça. Desconcertou esses músicos com suas propostas, mas encontrou neles parceiros entusiasmados que prontamente reconhecerem que ali estavam escrevendo um capítulo seminal da história do rock.
Dennis, Carl, Mike e Al retornaram de viagem e foram ao estúdio gravar os vocais. Estranharam tudo aquilo. Mike Love foi o mais resistente, abrindo uma frente de oposição a Brian que prosseguiria pelas décadas seguintes, assumindo o comando da banda quando o líder se afastou e com disputas judiciais milionárias.
Mesmo as músicas, digamos, mais radiofônicas de Pet Sounds – os hits Wouldn’t It Be Nice, God Only Knows e a versão da canção tradicinal Sloop John B – mostravam em suas estruturas a efervescência criativa de Wilson. Contrariando a expectativa da gravadora Capitol, que pouco se empenhou em seu promoção, Pet Sounds foi bem recebido por público e crítica, em especial na Grã-Bretanha, o que muito agradou a Wilson.
Pet Sounds estimulou os Beatles a irem além em trabalhos como Revolver (1966) e, sobretudo, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) – Paul McCartney coloca God Only Knows entre as mais belas canções já feitas, e o produtor George Martin assumia que Pet Sounds lhe ajudou a saber até onde era possível chegar, para ir ainda mais longe, com Sgt. Pepper’s.
Sgt. Pepper’s, por sua vez, deixou Wilson sem chão. Ele quis ir ainda mais fundo na experimentação com o projeto seguinte dos Beach Boys, Smile, que ficou inacabado em razão de sua fragilidade emocional e do excesso de drogas de seu criador – o álbum foi retomado em lançado apenas em 2011. Um colapso mental levou Wilson a sair de cena por alguns anos, até voltar a se reunir com a banda e, a partir de 1988, tocar seus projetos solo. Os Beach Boys seguem na ativa hoje sob o comando de Mike Love. Wilson está dando a devida solenidade à sua obra-prima em uma turnê comemorativa (veja abaixo).
Aos interessados nessa rica trajetória, o canal por assinatura HBO reprisa nesta segunda, às 12h50min, e quarta, às 22h, The Beach Boys – Uma História de Sucesso, cinebiografia de Wilson inédita nos cinemas brasileiros, que destaca com generosidade os bastidores da gravação de Pet Sounds.
A turnê
Brian Wilson está na estrada desde março apresentando a Pet Sounds 50th Anniversary World Tour, celebração que vai percorrer Estados Unidos e Europa até o final do ano. A gira foi inicialmente prevista com 70 espetáculos, mas ingressos rapidamente esgotados têm levado à marcação de sessões extras e abertura de novas datas. Wilson tem como convidados especiais no palco Al Jardine, seu parceiro de Beach Boys, e Blondie Chaplin, guitarrista que tocou com a banda no começo dos anos 1970. O espetáculo conta com 40 músicas. Na primeira parte, Wilson passa em revista grandes sucessos dos Beach Boys, como California Girls e Little Deuce Coupe. Na segunda, toca as 13 faixas de Pet Sounds. No bis, a festa continua com mais hits sessentistas, incluindo a "petsoundiana" Good Vibrations (faixa gravada nas mesmas sessões do disco mas lançada posteriormente), Help me, Rhonda e Surfin' U.S.A., além Love and Mercy, canção de seu primeiro disco solo, lançado em 1988.
O disco
O fato de ser constantemente reverenciado como um dos maiores discos da história da música pop mantém renovado o interesse por Pet Sounds, sempre disponível nos formatos tradicionais (CD e LP) e também nas plataformas de streaming, com as muitas versões que ganhou ao longo desses anos. A celebração dos 50 anos disco ganhou uma edição à altura – precisamente, quatro: uma caixa com quatro CDs e um Blu-ray de áudio; um CD duplo, e vinil 180 gramas com a gravações em duas opções, a mono original e em estéreo. O destaque é essa caixa (à venda no site da Amazon por US$ 68, cerca de R$ 240), com versões mono e estéreo das 13 faixas, takes alternativos, experimentações no estúdio, faixas vocais e instrumentais isoladas e registros ao vivo em diferentes épocas. O disco Blu-ray faz as canções de Pet Sounds – as faixas originais e takes alternativos ressoarem nas caixas de som com altíssima fidelidade e mixagem surround 5.1.
O filme
The Beach Boys – Uma História de Sucesso (Love & Mercy no origina) ficou inédito nos cinemas brasileiros. Saiu aqui direto em DVD e Blu-ray e agora circula pela TV por assinatura – será exibido nesta segunda, às 12h50min, e quarta, às 22h, no canal HBO. O filme na verdade é uma cinebiografia de Wilson focada em dois momentos. Na década de 1980, mostra o músico, interpretado por John Cusack, vivendo em estado permanente de torpor pela medicação imposta pelo guru picareta Eugene Landy (Paul Giamatti), que o mantinha afastado da família e administrava sua fortuna. Mais interessante, o segmento ambientado nos anos 1960, destaca Wilson (encarnado por Paul Dano) liderando os Beach Boys e emplacando sucessos Surfin' USA e California Girls. Até anunciar, após ouvir os Beatles em Rubber Soul (1965), que se afastaria dos palcos para dar vida ao antológico Pet Sounds. O filme mostra em detalhes o processo de gravação do disco lançado em 1966, bem como os atritos que Wilson teve com o parceiro de banda Mike Love e com seu pai, Murry Wilson, empresário e produtor do grupo no começo da carreira, e o colapso emocional que interrompeu sua fulgurante trajetória.
O livro
Tem previsão de lançamento para outubro a autobiografia I Am Brian Wilson, volume que vai reforçar a já vasta bibliografia sobre os Beach Boys e seu líder. Wilson, em parceria com o jornalista Ben Greenman, relata pela primeira vez os altos e baixos de uma vida marcada pelo reconhecimento como gênio musical e pelas turbulências domésticas que enfrentou, principalmente, por conta do pai violento e psicologicamente abusivo, do vício em drogas e do colapso nervoso que castrou sua obsessiva busca pela perfeição como criador. "Contar minha história honestamente é lembrar coisas que eu, às vezes, prefiro esquecer", anuncia Wilson em seu site. A turbulenta relação com o pai, Murry Wilson, é particularmente traumática para Brian, que fala das surras que ele os irmãos levavam do patriarca, um músico frustrado que tornou-se, como empresário e produtor do grupo, um fardo na carreiras dos filhos. Brian conseguiu romper o vinculo profissional em tempo de conduzir a guinada o grupo rumo a Pet Sounds, projeto desdenhado pelo pai. "Eu carreguei essa lembranças por uma vida inteira. Agora, tenho um livro inteiro para colocá-las para fora", completa o músico no anúncio do livro.