Em seu último show, uma apresentação intimista, parte de uma temporada no claustrofóbico bar Barristers' em Memphis, Tennessee, EUA, Jeff Buckley indagou à plateia:
– É assim que vocês gostam dos seus heróis do rock? Mortos?
Era segunda-feira, 26 de maio de 1997. Buckley, 30 anos, encontrava-se, então, perturbado pela morte do amigo e colega músico Tim Taylor, do Brainiac, em um acidente de carro.
Três dias depois, no feriado de Corpus Christi, o talentoso intérprete – o homem que pegou a década do grunge de assalto com o poderosíssimo Grace (1994) – tornou-se parte do predicado daquela mórbida pergunta. Cantando a plenos pulmões Whole Lotta Love, do Led Zeppelin, enquanto flutuava pelas águas lamacentas do Wolf River, um afluente do Mississippi onde nadava costumeiramente, foi arrastado pela correnteza. Seu corpo, encontrado seis dias depois.
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A comoção em torno de sua morte – confirmada como um acidente pela equipe de legistas que atendeu a ocorrência – parece pairar até hoje, parte também pela aura suicida que equipararia sua precoce partida à do pai, o compositor e guitarrista Tim Buckley, morto em 1975, aos 28, por uma overdose.
A interpretação de Jeff Buckley para Hallelujah, de Leonard Cohen, volta vez e outra ao topo das paradas, sendo mais revisitada por artistas atualmente do que a original. Mas até quando é possível agarrar-se à memória de um ídolo?
Lançado há algumas semanas, You and I, quinta compilação do total de 10 álbuns póstumos de Buckley, faz aflorar essa dúvida novamente. Composto majoritariamente pelas fitas demos gravadas pelo vocalista para mostrar à Sony sua visão para o que veio a tornar-se Grace, o único álbum que lançou em vida, You and I não deixa de ser um desses doloridos, porém belíssimos, exercícios de lembrança.
Versões despretensiosas e uma faixa autoral
Os registros trazem Buckley sozinho com sua guitarra em frente ao microfone, eventualmente conversando com o produtor Steve Addabo. Muitas das faixas da sessão já foram ouvidas em outros registros anteriores, como Just Like a Woman, de Bob Dylan, que aparece no duplo ao vivo Live at Sin-é (2003). E algumas outras canções, Just Like a Woman incluída neste pacote, perdem um pouco do impacto ao serem escutadas em versões despretensiosas.
A única faixa autoral sequer chega a ser uma faixa – em Dreams of You and I, Buckley dedilha a guitarra, indo e voltando com um refrão enquanto narra ter sonhado que assistiu a uma banda grunge tocando em um evento de conscientização sobre a aids. A crítica rendeu-se ao cinismo: "É hora de desapegarmos do trabalho de Buckley e deixá-lo finalmente descansar em paz", termina a resenha da Pitchfork. "Simplesmente, em vez disso, toque o perfeitamente magnífico Grace", aconselhou o The Guardian.
Mesmo assim, You and I é uma amostra do poder que a voz de Buckley tem de parar uma sala, de suspender um instante, de apertar o coração. O refrão de Calling You, música tema do filme Bagdad Café (1987) originalmente cantada por Jevetta Steele, é o exemplo máximo dessa potência arrepiante. Mas, além de intérprete, Buckley era também quase um estilista em suas versões, como mostra em seu cândido cover de The Boy with the Thorn in His Side, dos Smiths.
Talvez seja, mesmo, hora de ater-se à obra-prima que é Grace e parar de escavar o catálogo de gravações de Jeff Buckley. Mas, conforme o disco termina com os versos de I Know It's Over, também dos Smiths ("Sei que acabou, mas ainda me agarro / Não sei mais para onde posso ir"), é irresistível imaginar, a partir de cada nova leva de gravações ao vivo e demos lançadas, para onde iria aquela voz – e para onde nos levaria com ela.
YOU AND I
De Jeff Buckley
Rock, Columbia Records, 10 faixas, R$ 29 e disponível nos serviços de streaming.
Cotação: 4