Prince saiu de cena mais uma vez. Ao longo de sua fulgurosa carreira, o artista – como ele próprio passou a se anunciar certa vez – desapareceu e ressurgiu em diferentes ocasiões, sempre por vontade própria. Decidiu, no auge da fama, travar uma batalha contra as amarras criativas e mercadológicas impostas pela indústria musical. Abriu mão da própria identidade e renunciou a seu nome para virar um símbolo, literalmente, impronunciável – e invendável. Voltou recentemente a ser o velho e bom Prince. Pena que por pouco tempo.
Essa atitude do baixinho vaidoso, enfezado e genial cobrou seu preço. Nas últimas décadas, Prince sabotou a si próprio com seu isolamento artístico e midiático, no qual se voltou à produção incessante de discos irregulares – alguns brilhantes e outros tantos permeados por um egocentrismo estéril – que poucos ouviram. Talvez por isso as novas gerações não tenham noção da importância de Prince na cultura pop. Que a repercussão da precoce morte deste gigante da música, aos 57 anos, sirva para mais jovens descobrirem sua vasta obra, sobretudo que ele produziu a partir de seu primeiro disco, For You (1978) até Diamonds and Pearls (1991).
Em seus tempos áureos, nos anos 1980, com músicas como Purple Rain e Kiss tocando sem parar em todo o mundo, Prince foi tão grande quanto Michael Jackson e Madonna. Talvez até maior, visto que seu talento era absoluto como cantor, compositor, produtor, multi-instrumentista, performer e marqueteiro. Herdeiro musical e espiritual de James Brown e Jimi Hendrix, Prince foi sempre um artista singular e sem concorrentes na sua fusão de funk, soul, jazz e rock 'n' roll. Enfileirou uma série de discos de sucesso – Purple Rain (1984), Around the World in a Day (1985), Parade (1986) e Sign o' the Times (1987). Com seu visual andrógino e postura lasciva, Prince ajudou a injetar na música pop norte-americana, durante a conservadora era Reagan, uma alta voltagem de provocação comportamental e sexual.
Leia mais
Morre, aos 57 anos, o cantor Prince
Prince: 10 músicas para conhecer um dos artistas mais influentes da música
Personalidades lamentam nas redes sociais a morte de Prince
Em meados dos anos 1990, no ápice de sua popularidade, Prince rompeu com a gravadora Warner e decidiu seu dono de seu destino, e não mais um "escravo", como escrevia em seu rosto. Nos anos seguintes, ele lançou por seu próprio selo dezenas de álbuns ricos em experimentações que somente seus fãs mais empenhados tiveram interesse em descobrir.
Prince foi um dos primeiros artistas a vislumbrar o potencial da internet – e muito de sua independência vem da maneira criativa e profissional com que fez uso das ferramentas digitais e virtuais para se manter em atividade. Em 2004, lançou seu próprio canal de download, Musicology, nome do disco homônimo lançado naquele ano e anunciado por ele como um espécie de carta de alforria para trabalhar longe de regime draconiano imposto aos artistas pelas corporações musicais.
Mas talvez ele tenha superestimado a autonomia vislumbrada pela internet – o consumo virtual de música seguiu atrelado às grandes corporações. E, paradoxalmente, o rigoroso controle que exercia sobre suas criações o fez barrar a veiculação de suas músicas em serviços como YouTube e Spotfy, o que restringiu muito o acesso a elas. Em vez de ganhar a sonhada liberdade no mundo virtual, Prince percebeu o quanto esse ambiente também é restritivo a quem nele quer remar contra a maré.
Em 2014, uma nova reviravolta na carreira recolocou Prince outra vez no topo. Reatou com a Warner para lançar dois álbuns simultâneos: Art Official Age e Plectrumelectrum, ambos ovacionados por público e crítica e colocados entre os melhores trabalhos de sua carreira. Prince voltou aos holofotes da mídia, fez turnês lotadas e reiterou a reverência que lhe prestavam artistas de diferentes gerações. Mas ele nunca foi de se acomodar com o sucesso. Ainda mais com a nova formatação da indústria musical, moldada no consumo rápido e fragmentado. Já no ano seguinte, apresentou, por conta própria, na surdina, outro projeto duplo: Hit n Run 1 e 2, álbus direcionados ao Tidal, serviço musical por streaming criado pelo músico Jay-Z com o objetivo de remunerar melhor os artistas nas plataformas digitais.
Reinventando-se mais uma vez, Prince estava até dias atrás na estrada apresentando a Piano & A Microphone Tour, espetáculo em que tocava sozinho no palco seus hits e covers – o último show foi dia 14 de abril, em Atlanta (EUA).
Certamente ouviremos falar ainda muito de Prince. De seu volumoso acervo deverá emergir muito material inédito. Sabe-se que ele deixou dezenas de projetos gravados e nunca lançados. Entre eles, o Camille, em que assumiu a identidade de uma cantora fictícia cantando em falsete. Amostras desses trabalhos foram distribuídos em diferentes discos seus ao longo da carreira.
Prince foi um gigante da música, reconhecido como guitarrista virtuoso e compositor de rara sensibilidade e enorme repertório. Como toda estrela pop, tinha suas excentricidades – como ter se convertido em fervoroso cristão seguidor das Testemunhas de Jeová. Mas nenhuma excentricidade sua foi maior e mais evidentes a paixão pela música, para a qual canalizou, com perfeccionista obsessão, toda a sua energia física e criativa.
Dentro do seu celebre estúdio-bunker Paisley Park, em Minnesota, Prince deu seu último suspiro. Trabalhou até morrer no lugar onde mais gostava de viver. Foi de fato um artista, um símbolo.