Dois dias antes de fazer um show histórico no Psicodália 2016, em Santa Catarina, Elza Soares, conversou com a reportagem do Diário Catarinense por telefone. Da experiência de quem chegou aos 76 anos encarando tristezas e alegrias de frente, ela "dá uma aula" de como ir à luta com dignidade, levantando bandeiras pertinentes ao momento atual como as questões das mulheres, negros e travestis. Deguste a seguir:
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A Mulher do Fim do Mundo (2015) foi eleito melhor álbum de 2015 pela revista Rolling Stone. Como foi fazer este disco tão reconhecido?
Foi lindo. E continua sendo. Estava fazendo um show com o Kaká (Guilherme Kastrup, produtor) e aí surgiu a ideia de fazer um CD da Elza, porque eu tinha participado de uma música do CD do Kaká. Mas a gente não sabia como levar adiante. Então pensamos: "vamos fazer um CD com músicas inéditas", que eu ainda não tenho. Esse é o primeiro.
Quais artistas inspiram a Elza hoje em dia?
Sempre escuto Jorge Ben Jor. Mas também tem muita gente boa despontando agora no cenário musical, se for para falar em uma pessoa só, eu não sei. Tem a Larissa Luz. Márcia Castro. Tem a Joyce Cândido também, né? A juventude brasileira tem potencial.
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Na sexta-feira, você participou de um bloco de carnaval em São Paulo que homenageava a mulher negra. A carne mais barata do mercado ainda é a negra?Agora não, agora ela é a mais cara que tem. Porque eu estou aqui e sou prova disso.
Como você enxerga a condição da mulher negra na sociedade brasileira hoje?Ainda falta muita coisa. Tem um buraco muito grande. Falta muito para a mulher negra chegar, tomar conta. Falta muito. Mas já tem uma bandeira sendo carregada. Tem que melhorar o salário, igualar ao do homem. Tem que educar mais.
Você viu um vídeo de umas meninas jovens da periferia cantando Maria da Vila Matilde?
Nossa, eu assisti, cara. Me fez chorar. Eu chorei muito.
Essa música é um incentivo à denúncia da violência doméstica?
É uma denúncia, né? Porque hoje a mulher pode gritar. Ela deve sair gritando. Não tem que ficar em casa paradinha sofrendo. Denuncia, meu bem, denuncia. Pede socorro. Grite na hora certa, porque gemer é só na hora boa. Acho que como mulher negra eu tenho a obrigação de falar o que não está bom. Por mim e por todas as mulheres.
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E quem é a Mulher do Fim do Mundo?
A Mulher do Fim do Mundo é uma mulher corajosa, uma mulher que vai à luta, que não tem medo. Que busca. Que não para no tempo. Essa é a Mulher do Fim do Mundo.
E a Elza é essa mulher que quer cantar até o fim?
Lógico. Quando eu começar a desafinar, eu paro, mas ainda não tô. Tô bem à beça. Gosto de dizer que a música é a medicina da dor. Cura tudo.
Falando sobre outra música sua, Benedita, porque você escolheu retratar nesse álbum a triste realidade das travestis no Brasil?
É terrível, é forte, é pesado. Benedita também não deixa de ser denúncia. Contra homofobia e transfobia, entendeu? Também fala da questão das drogas.
Você costuma abordar temas sociais do país. E isso ficou ainda mais forte no último disco. A classe artística brasileira ainda tem receio de tocar nesses assuntos?
Trato disso na música. Assim como falo de sexo em Pra Fuder. É tranquilo. Tem que ser dito.
De onde você tira tanta força para continuar cantando?
Minha inspiração é a vida. A vida te dá essa força. A vida, a vida, a vida. Pé no chão. Tirando os pregos, tirando os calos e dançando. E vai embora.
Se você tivesse que aconselhar uma jovem mulher que deseje trilhar um caminho parecido com o seu, o que diria a ela?
Não pare. Não olhe para trás. Vá em frente. Pense no agora. Amanhã eu não sei de nada. Só sei do que está acontecendo agora. O agora é a melhor coisa do mundo. Quando eu era jovem, mulher que cantava era puta. Minha mãe dizia que não queria puta na família. Mas aí ela já tinha uma, porque eu não queria parar de cantar.
O teu CD novo tem uma conexão muito forte com a juventude. Como tem sido ver vários jovens nos teus shows?
Antes do CD, eu já tinha essa conexão com a juventude. Agora a coisa ficou melhor. É muito gostoso.