A vida real é pródiga em apresentar enredos e personagens que parecem inalcançáveis ao mais inventivo dos roteiristas. Um exemplo recente dessa recorrente assertiva é a série documental Making a Murderer, que a Netflix estreou mundialmente na surdina, em 18 de dezembro. Investindo no rico manancial da crônica policial, a atração está sendo descoberta aos poucos e virando sensação da temporada, com ótima avaliação de público e crítica.
Como diz seu título original, Making a Murderer mostra como é possível criar um assassino combinando um crime nebuloso, uma investigação policial negligente e direcionada e uma engrenagem jurídica incapaz de filtrar falhas processuais que podem levar à condenação um inocente. A história em foco é o caso real do americano Steven Avery, um sujeito meio bronco e com passado de encrencas sem maior gravidade na pacata Manitowoc, cidadezinha do Estado de Wisconsin, norte dos EUA.
Filme derivado da série "Marco Polo" estreia na Netflix
Celebrada por seus fãs, "Black Mirror" entra na grade da Netflix
50 filmes para ver na Netflix
Em 2003, Avery ficou nacionalmente conhecido ao ser inocentado, graças a um exame de DNA, da acusação de estupro que o fez mofar 18 anos na prisão. O culpado era outro, como sempre afirmou. Ele ganhou um pedido de desculpas da vítima que o havia reconhecido como agressor e foi recomeçar a vida tocando seu ferro-velho. Mas eis que, em 2005, quando tramitavam tanto uma ação para indenizar Avery no valor de US$ 36 milhões quanto uma mudança de legislação inspirada nas grosseiras falhas que conduziram seu caso, ele foi acusado de um novo crime: assassinato e ocultação do cadáver de uma jovem fotógrafa.
A inusitada situação chamou a atenção das diretoras e roteiristas Moira Demos e Laura Ricciardi, estudantes de cinema da Universidade de Columbia, que acharam ser o caso de Avery um bom tema para o documentário que planejavam. Não faziam ideia do quanto seriam tragadas pela história que acompanhariam ao longo de 10 anos, transformando-a em um thriller da mais alta tensão com 10 episódios pontuados por desconcertantes reviravoltas. Moira e Laura reuniram cerca de 700 horas de imagens com depoimentos de Avery, familiares e vizinhos, material de arquivo e registros policiais e judiciais, além das sessões do rumoroso julgamento pela segunda acusação, em 2007 - que envolveu também um sobrinho adolescente de Avery com notórios problemas cognitivos, arrolado como seu cúmplice.
Making a Murderer expõe as entranhas de um sistema que está novamente em xeque após fazer vista grossa às absurdas falhas processuais que provocaram a injusta condenação de 1985. Com Avery de volta ao banco dos réus, parecem consistentes os indícios de que ele está sendo vítima de uma armação, em represália aos danos que provocaria em bolsos e reputações com sua indenização milionária.
Como um ótimo thriller de tribunal - com cenário, tipos e situações que remetem a séries de ficção como Twin Peaks e True Detective -, Making a Murderer destaca o embate entre os advogados de Avery e o promotor que quer sua cabeça. A cada lance da defesa que indica um cenário preparado para a condenação, com provas plantadas, depoimentos manipulados, procedimentos éticos e legais atropelados, a promotoria lança uma carta da manga para embaralhar a percepção dos jurados - e dos espectadores - sobre a culpa ou a inocência do réu. Essa dramaturgia da vida real, cabe destacar, tem nos pais idosos de Avery, convictos da inocência do filho, um potente recurso para humanizar a narrativa em meio à solenidade dos ritos legais e forenses. Até o veredicto do juiz, acompanha-se o impasse com os nervos em alerta. E esse não é o único clímax da história.