Um espectro ronda Porto Alegre. Com terno e sotaque inglês, foi visto pela última vez no início dos anos 2000, no circuito Barros Cassal-Independência, quando seu reaparição parecia inevitável. Antes disso, havia assumido um sem-número de visuais e timbres, sem nunca perder a postura autossuficiente e o discurso irônico que o fizeram ganhar nome e fama em lugares já não tão longe das capitais. Nos últimos anos, praticamente sumiu – com poucas e esporádicas aparições públicas, chegou a ter sua existência questionada. Virou lenda. Agora, passou a gerar agitação em seus seguidores, que questionam: o rock gaúcho morreu ou está hibernando?
Durante pelo menos 30 anos, o rótulo serviu para agrupar bandas tão distantes entre si quanto DeFalla e Acústicos & Valvulados. Calcada em uma cena musical bancada por um público sedento, organizada em coletâneas como Rock Garagem (1984) e Rock Grande do Sul (1985), divulgada por rádios como a Ipanema FM e, principalmente, vivida em bares como Ocidente e Garagem Hermética, essa efervescência criativa fez com que Porto Alegre se tornasse uma das capitais brasileiras do rock'n'roll. Esses elementos prederam força – hoje, o protagonismo de outros gêneros no Estado e uma já antiga repulsa ao termo acabaram por colocá-lo em xeque.
– Nossa cena cheira a mofo – atesta o jornalista Cristiano Bastos, autor de Gauleses Irredutíveis, um dos livros definitivos sobre o rock feito por aqui. – A última renascença foi entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, com um certo barulho em torno da Bidê ou Balde, da Video Hits e, principalmente, da Cachorro Grande. Hoje, a fórmula está extremamente desgastada, falta sangue correndo nas veias.
Para Bastos, a mudança no perfil da classe média – que, por muito tempo, foi a grande produtora de rock'n'roll no Brasil – ajuda a explicar o "momento MPBzístico" vivido pelo Rio Grande do Sul. É claro que sofreu-se aqui o impacto de uma crise generalizada do rock – nos cartazes dos festivais, os nomes em letras graúdas tocam hip hop, R&B e música eletrônica, enquanto as paradas de sucesso brasileiras são dominadas por sertanejo universitário, funk pop e pagode.
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Não que a Capital tenha parado de fazer rock. Bandas como Apanhador Só e Dingo Bells e músicos como Ian Ramil e Erick Endres despontam como nomes importantes de uma produção cultural local, mas distanciam-se intencionalmente do rótulo de "rock gaúcho". O baterista e vocalista da Dingo Bells, Rodrigo Fischmann, fala no termo como algo do passado:
– Ainda existem bandas que prestam uma espécie de homenagem ao rock gaúcho e miram nos ídolos dos anos 1980, mas isso não se caracteriza mais como uma cena – avalia. – O som que é feito no Sul, hoje em dia, é muito maior do que esse termo.
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A crise do rock é generalizada, mas o Rio Grande do Sul tem suas particularidades. Fernando Rosa, jornalista e produtor cultural conhecido como Senhor F, lembra que o gênero começou a degringolar no Estado por volta de 2008. Anos antes, a internet havia dado esperança a bandas independentes, como Superguidis, Stratopumas e Pública, e mudado por completo as relações entre músico, arte e público. Como produtor, Rosa viu ali a possibilidade de fomentar uma cena baseada em selos independentes e festivais regionais, como Morrostock, Psicodália e a própria Noite Senhor F. A ideia dos selos morreu na casca, já que vender álbuns tornou-se obsoleto, e os festivais conseguiram durar até o fim da década passada, quando a crise econômica fez o movimento arrefecer. Somado a isso, as bandas não explodiram tão rapidamente quanto a empolgação do início do milênio fazia acreditar.
– A aposta foi muito alta, assim como a consequente frustração. Ingenuamente, achamos que haveria um mercado capaz de absorver um número de bandas que viabilizasse uma cena, e isso não rolou. Essa desilusão levou muita gente a largar a música e ir trabalhar para ter o que comer – lembra Fernando Rosa. – Porto Alegre sempre consumiu a produção local e, naquele momento, houve um rompimento nessa linha evolutiva.
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Enquanto esse processo acontecia, cenas locais firmes, como a gaúcha, iam perdendo a batalha contra a internet: bares davam lugar a comunidades virtuais, palcos cediam terreno ao MySpace e o bate-papo na mesa era trocado pelos chats. Com o crescimento do virtual, era inevitável que o peso local diminuísse, dando lugar a uma ideia mais expandida de universo. O problema é que, para muita gente, o inferninho era a única alternativa e o sucesso mundial era inatingível.
– A digitalização detonou com as cenas locais, não só com a cena gaúcha. Houve um desenraizamento. Minha geração nasceu grudada no Garagem Hermética, porque não tinha outro jeito. Era ali que estava todo mundo. Esse eixo organizador parece não existir mais – diz Gustavo Mini Bittencourt, guitarrista e vocalista dos Walverdes.
Outra teoria, essa defendida pelo jornalista e produtor musical gaúcho Carlos Eduardo Miranda, figura icônica do rock'n'roll brasileiro nos anos 1980 e 1990, é de que Porto Alegre esteja só enfrentando tardiamente um baque sentido em outros lugares do mundo há algum tempo. Por ser uma cidade com DNA roqueiro, teria havido certa resistência ao inevitável envelhecimento de um gênero musical. Só que agora está acabando o gás:
– Ninguém mais ouve rock, virou coisa de velho careta. E isso só é novidade para os gaúchos. A notícia não é que o rock está sumindo em Porto Alegre, mas que só agora o rock está sumindo em Porto Alegre – diz Miranda, expondo uma realidade inexorável.
Morreu ou não morreu, afinal?
Não é de hoje que se diz que o rock morreu. Em 2001, o disco de estreia dos Strokes foi saudado como a pílula salvadora para um ritmo moribundo, trazendo a reboque nomes como The Killers, Franz Ferdinand, Arctic Monkeys, The Kooks e outras tantas. Hoje, a banda do vocalista Julian Casablancas é o último grande nome que o gênero revelou. Festivais de massa como o Coachella e o Lollapalooza, que sempre tiveram em seus palcos os maiores nomes do rock mundial, têm como protagonistas artistas do rap (como Eminem e Snoop Dogg), da música eletrônica (como Jack Ü e Calvin Harris) ou os dinossauros Guns N' Roses e AC/DC. No Brasil, o rock nacional virou coadjuvante: em 2015, pela primeira vez na história, nenhuma das cem músicas mais tocadas nas rádios tem a trinca guitarra, baixo e bateria como base. Ou seja: se não morreu, o rock está em estado grave.
Em 2014, o baixista do Kiss, Gene Simmons, sepultou o rock, dando como causa mortis a fragmentação impulsionada pela tecnologia.
– Se a gente acredita que o rock tem mais a ver com atitude do que com qualquer coisa, não tem como ele sobreviver sem um contexto. Ele precisa do bar, da revista, da loja. E a internet não proporciona isso – diz o jornalista Ricardo Alexandre, ex-diretor de redação da revista musical Bizz.
Aqui, soma-se a falta de uma conjuntura que incentive a produção roqueira, como aconteceu nos anos 1980 (quando o Brasil saía às ruas para pedir eleições diretas e o fim da ditadura e encontrava nas guitarras um símbolo de revolta) e 1990 (quando bandas como Raimundos e Nação Zumbi mostraram que o gênero podia se misturar com as coisas locais). Sem uma mola propulsora, o rock minguou.
– A partir dos anos 2000, se vê uma pulverização maior das cenas. Talvez por isso não se tenha mais movimentos tão claros. O rock perde o poder de mobilização e articulação de discurso – explica Eduardo Vicente, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Da Vitrola ao iPod.
Como símbolo, é inevitável que o gênero também perca força. Se antes o sonho de qualquer adolescente rebelde era comprar uma guitarra ou imitar Joey Ramone, hoje as coisas mudaram.
– Quem quer mudar o mundo vai trabalhar com ativismo digital, e quem quer pegar mulher faz sertanejo universitário – brinca Ricardo Alexandre.
O problema em sepultar o rock é que ele pode voltar das cinzas. Ainda é cedo para decretar a morte de um gênero que há pelo menos 60 anos dita comportamento e cria ídolos. Para o crítico Juarez Fonseca, é mais sensato falar em transformação:
– Não temos o distanciamento suficiente para analisar as revoluções causadas pelas redes sociais. Acho melhor falar que estamos em inflexão.