A diretora e roteirista italiana Alice Rohrwacher foi buscar nas próprias origens os elementos centrais de As Maravilhas (2014), filme em cartaz em Porto Alegre na Sala Paulo Amorim. O mais recente longa da realizadora do sensível Corpo Celeste (2011) não chega a ser autobiográfico, mas ecoa muito da vivência da autora: As Maravilhas foi rodado onde Alice nasceu, na região rural fronteiriça entre a Umbria, o Lácio e a Toscana, e é centrado no cotidiano de uma família italiano-germânica - como os Rohrwacher. Mais: no elenco do filme cuja personagem central é a filha mais velha do clã, está a ótima atriz Alba Rohrwacher - de títulos como Um Sonho de Amor (2009) e A Bela que Dorme (2012) -, irmã da cineasta, que interpreta a mãe. Essa literal familiaridade contribui para que As Maravilhas envolva com a calidez e a sensorialidade de suas imagens pastoris.
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Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2014, o drama mostra a dia a dia de uma comunidade de apicultores sob o olhar de Gelsomina (a estreante Maria Alexandra Lungu), jovem de 12 anos que ajuda os pais e as três irmãs menores nos cuidados com as abelhas e o mel e nos afazeres da fazenda. Adolescente que começa a descobrir a sexualidade, a garota interessa-se por um menino calado que passa a viver com a família, como parte de um programa de reinserção social. Aos poucos, Gelsomina consegue romper a carapaça em que Martin (Luis Huilca) se protege do mundo, mostrando-lhe os pequenos encantos da vida no campo.
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Mas o idílio bucólico não está imune a turbulências: Gelsomina, que praticamente toca os negócios sozinha, sente a pressão do pai, o sonhador e excêntrico Wolfgang (Sam Louwyck), para que ela assuma cada vez mais as tarefas de rainha daquela colmeia. Ao mesmo tempo, os apicultores enfrentam problemas mundanos como os apertos financeiros, as fiscalizações sanitárias e a contaminação com pesticidas das árvores em que as abelhas circulam. Nesse paraíso um tanto instável, Gelsomina vai deparar com uma visão encantada: uma apresentadora de televisão que surge no meio do bosque vestida como uma musa da Antiguidade na gravação do programa Cidade das Maravilhas. No comando de um reality show que enaltece as famílias trabalhadoras do local, a bela Milly Catena (Monica Bellucci) afigura-se aos olhos da menina como uma espécie de fada.
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As Maravilhas convida o espectador a partilhar das experiências singulares vividas pelos personagens: as abelhas que passeiam pelo rosto de Gelsomina, a cama feita no jardim onde toda a família dorme nas noites quentes, o mel que se espalha pelo chão do depósito depois de um acidente lambuzando as crianças - tudo exalta as sensações físicas. A sequência da gravação para a TV dentro de uma caverna em uma ilha, à noite, com todos vestidos com trajes que remetem às raízes etruscas da região, impressiona por conta de seu registro ao mesmo tempo articial e belo, vulgar e sublime, contemporâneo e ancestral. Em As Maravilhas, a pureza vigorosa de Gelsomina - mesmo nome da personagem interpretada por Giulietta Masina no clássico A Estrada da Vida (1954), de Federico Fellini - e a exuberância decadente de Milly são duas manisfestações da mesma fábula humana.
As Maravilhas, de Alice Rohrwacher - Drama, Itália, 2014, 111min. Em cartaz na Sala Paulo Amorim (às 15h e às 19h). Cotação: 4 de 5 estrelas