Flavio Basso era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones, como tantos outros. E Syd Barrett. E Bob Dylan. Como poucos, experimentou ser cada um deles. "Aprendi a transar do palco para a cama", me contou, ao relembrar os tempos de idolatria juvenil de TNT e Cascavelletes, bandas que remetiam aos primórdios de Beatles e Stones, e que se distinguiam do rock brasileiro dos anos 1980 por falarem de sexo, e lhe concederam estrada e alguma notoriedade. O merecido culto nacional, porém, veio na fase solo, a bordo de um personagem delirante e universal, que flertou com Dylan para namorar com Barrett, e era extremamente lascivo, e já nasceu transmutado.
Frank Jorge: "Cara complexo, sensível, talentoso como poucos"
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Rascunhado em São Paulo, em um show de Paul McCartney, Woody Apple era cabeludo e escrevia canções folk, mas sumiu assim que o roqueiro voltou para a efervescente Porto Alegre da turma de 94’, e se encantou com "as gurias brechozentas que andavam pelas ruas e as bandas experimentais que conheceu no Garagem Hermética". Rebatizado Júpiter Maçã, ele tirou sua Rickenbacker da caixa, eletrificou seu folk, como Dylan, e passou a escrever sons lisérgicos, feito Barrett – Woody retornou mais tarde, inclusive em músicas registradas este ano.
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Em 1995 recebi Júpiter na redação de ZH, com a primeira fita da nova fase em um kit completo: postura de estrela do rock, fotos de divulgação com blusa preta de gola alta, corte futurista de cabelo e um discurso de quem acredita muito em si mesmo: "Júpiter é por causa da nave do Dr. Smith, Maçã por conta dos Beatles e do LSD"– anos depois acrescentou que "Apple rendia tributo ao avô, de origem anglo-germânica, nascido em Cruz Alta, e que fazia os solos de clarineta no coreto da cidade, os mesmos do livro de Erico Verissimo".
A Sétima Efervescência justificou a eloquência. O álbum foi a obra-prima da agitada cena roqueira gaúcha dos anos de 1990, impulsionada pelo vasto espaço na imprensa local. Cáustico, maduro e confessional, estabeleceu uma conversa direta com o público, entre faixas viajantes, radiofônicas e dançantes. Não à toa Um Lugar do Caralho ganhou o status de hino. Esteticamente, a obra deu o rumo da órbita retrô futurista de Júpiter, com as melhores referências de cultura pop nacionais e gringas, sobretudo psicodélicas, mas uma marca própria impressa em cada canção. Em Plastic Soda, de 1999, como Jupiter Apple e pela gravadora nacional Trama, ele fez bossa psicodélica em inglês.
Meio beat e meio mod, Flávio/Júpiter foi um roqueiro nato, que cometia excessos, preocupava os amigos e estava sempre à procura de algo. E de si mesmo, como escreveu em Beatle George: "Onde foi parar aquele menino / que queria cantar como o beatle George?"
Era um menino cheio de esperança. E especialmente talentoso.
Luto
Marcelo Ferla: na órbita de Júpiter
Jornalista que acompanhou de perto a carreira do músico fala sobre as várias facetas do artista
marcelo ferla
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