Tem poesia na Feira? Tem, claro. Nem sempre a obra específica que você procura. Inspirada no livro Guia de Leitura: 100 Poetas que Você Precisa Ler, que está sendo publicado pela L&PM, a reportagem de Zero Hora pediu a um dos organizadores, Vinícius Carneiro (os demais são Léa Masina e Ricardo Barberena), que escolhesse 10 nomes essenciais dentre a centena de poetas apresentados na obra - e então foi à praça para ver o que encontrava.
Vinícius montou uma lista com diversidade de estilos e épocas (veja abaixo). No levantamento banca a banca, Drummond, Pessoa e Homero são presença quase certa. Poe também está por toda parte, mas com sua prosa, e não com sua poesia, e o mesmo acontece com Shakespeare: está lá seu teatro, mas quase não se encontram seus sonetos. Os Cantos, de Pound, foram encontrados em três bancas. Os demais da lista são presenças raras. Os livreiros apresentam explicações diversas.
- Quando sua banca tem perfil mais geral, a chance de um leitor querer encontrar um livro muito específico é menor. E é assim com a poesia - comenta Guilherme Dullius, da Beco dos Livros.
- A gente traz menos livros para a praça, porque o espaço da banca é limitado, e a procura por poesia costuma ser menor - diz Luiz Carlos Bianchini, da Brik dos Livros.
Não é assim com todas as bancas. A única que conseguiu a invejável pontuação de nove autores presentes entre 10 (faltou apenas Quevedo) foi a Ladeira Livros - o proprietário, Mauro Messina, andou negociando recentemente uma biblioteca farta em ótima poesia, e seus clientes já conhecem o perfil da banca e da loja, então a procura pelos versos ali segue firme. Ao mesmo tempo, o resultado da consulta, altamente empírica, não significa que não há espaço para a poesia na Feira. Autores com edições mais recentes em circulação são mais fáceis de encontrar do que Quevedo, pouco publicado pelo mercado brasileiro há décadas, apesar de sua importância.
A LENDA DE QUE
POESIA NÃO VENDE
Para além dos volumes consultados, muito se encontrou do chileno Pablo Neruda - um preferido dos frequentadores da Praça, ou de Manuel Bandeira, Vinícius de Morais, Borges. Há poesia de autores locais, e poesia gauchesca de autores locais. Mas a poesia de fato parece ocupar um espaço menor no conjunto da banca - e a justificativa continua sendo a de que o público procura pouco. Será mesmo?
- É preciso muito cuidado ao tratar deste tema. Qual poesia não vende? Manuel Bandeira, Drummond e Cecília Meireles são espólios cada vez mais valorizados e seguem vendendo muito. A cota de publicações de poesia é menor do que qualquer outro gênero nas editoras. É que se criou um mito entre editores de que romance é o que vende. Se fizermos um levantamento, vamos perceber que tanto romances quanto livros de poesia encalham - argumenta Ricardo Silvestrin, músico e poeta.
- Há um paradoxo: apesar de dizerem que a poesia vende pouco, há cada vez mais saraus e outros encontros que celebram os poemas - diz o patrono da Feira, Dilan Camargo.
OS POETAS
Pedimos ao pesquisador Vinícius Carneiro que selecionasse, dentre os poetas apresentados no volume Guia de Leitura: 100 Poetas que Você Precisa Ler, 10 essenciais. O volume apresenta breves ensaios de escritores e professores sobre a obra de cada um dos autores. Segue a lista, comentada, com o nome do articulista que o apresenta no livro e um breve trecho:
Carlos Drummond de Andrade, por Maria do Carmo Campos
De matriz modernista, a poesia de Drummond ultrapassa o quadrante estético e ideológico dos anos vinte no Brasil, ao lançar-se a níveis temáticos e formais de maior complexidade, com perquirições de teor filosófico voltadas aos enigmas que subjazem a situações banais ou extraordinárias. É o que acontece em Claro Enigma, sob anunciada inspiração de Paul Valéry, com um conjunto de poemas em rumo diverso do percorrido até A rosa do povo. Já no primeiro livro, um anjo torto predestinava Carlos a uma vida gauche, a um olhar oblíquo, apto a captar pela palavra as relações entre o sujeito e o seu tempo.
Edgar Allan Poe, por Patrícia Lessa Flores da Cunha
Na concepção de Poe, o mundo da criação literária é essencialmente hierárquico: na base, estão as obras realistas, os romances; no meio, a prosa dos contos; no topo, o verdadeiro poema. Define, então, a poesia como a criação rítmica da Beleza, cujo único árbitro é o Gosto, não se relacionando, a não ser incidentalmente, com o Dever ou a Verdade. O prazer da poesia adviria da contemplação do Belo que, como toda emoção, é transitório.
Ezra Pound, por Atilio Bergamini
Os leitores que se dedicarem à descoberta desse poema [Os Cantos (1925)] de quase 800 páginas, ao mesmo tempo épico e memorialístico, poliglota e oral, fragmentado e estruturado, descontínuo e contínuo, repleto de alusões, citações, traduções e referências, sentirão talvez alguns dos principais problemas da humanidade ao longo do século XX, entre eles, o dilema fáustico de como criar sem espalhar destruição. De fato, um dos móveis de Pound parece ter sido criar formas a partir de tradições reinventadas, uma espécie de antropofagia, cuja fome tinha a escala dos imperialismos norte-americano e europeu.
Fernando Pessoa, por Carlos Reis
Pessoa não é, então, um sujeito único, mas vários; segundo ele, a diversidade e o culto da alteridade instauradas pela heteronímia têm uma origem infantil (logo na infância surgiram figuras que povoaram a vida íntima do escritor), mas só num dia determinado "nasce" o primeiro heterónimo. O episódio [que explicava a génese dos heterónimos] está descrito na carta a Casais Monteiro e é hoje sabido que ele faz parte do vasto movimento de fingimento que atravessa toda a vida literária de Pessoa.
Francisco Quevedo, por Rita de Cássia Miranda Diogo
O poeta espanhol se destacou ao inovar os códigos e formas poéticas de sua época, modificando-os e adaptando-os às exigências do novo contexto cultural do Barroco. Assim, podemos considerar o conceptismo como uma das maneiras pela qual Quevedo coloca em prática esta inovação, ou seja, a relação lúdica que estabelece com a linguagem, especialmente com as formas consagradas pela tradição. Em termos gerais, esse jogo consiste em um complexo experimentalismo linguístico, por meio do qual, Quevedo, a partir de um mínimo de referentes, oferece ao leitor uma amplitude de significados, convidando-nos assim a participar de seu universo poético.
Friedrich Hölderlin, por Marco Aurélio Werle
Tanto na poesia quanto na filosofia, Hölderlin se move numa região que transcende situações e fatos do cotidiano e se aproxima de um universo marcado pela experiência do divino e do sagrado, em suma, pelo panteísmo, o "um e tudo" (em grego: en kai pan). A tematização do todo implica atentar para a questão da origem, que é tanto o todo quanto a parte, isto é, abriga nela mesma a diferença: a plenitude do divino (o todo) contrasta com as carências e limitações da finitude humana (a parte).
Homero, por Donaldo Schüler
[Na Odisséia] Homero conversa com a Musa. Irrita-se ao lembrar que os companheiros de Odisseu morreram por terem cometido a loucura de abater bois de Hélio, embora o comandante da última nau o tivesse proibido rigorosamente. Quem decide por onde começar é a Deusa. Isso não impede que ouça sugestões. A viveza da narrativa brota dessa conversa. Homero - a que poeta atribuímos esse nome não importa - não se comporta como narrador passivo. Sente-se no direito de reinventar o que a tradição lhe transmitiu.
William Butler Yeats, por Myriam Ávila
Um dos seus poemas mais comentados, Leda e o cisne (1923), apresenta de forma poderosa o estupro de Leda por Zeus encarnado em cisne. O poema começa já com um "baque súbito", sem nenhuma preparação prévia. Dir-se-ia que ele despenca sobre o leitor como o cisne sobre Leda. O protagonista é a violência, mais do que a mulher que a sofre ou o deus que a pratica. O refinamento estético do verso, no entanto, contrasta com a brutalidade do ataque, criando ambiguidades de leitura que impedem um juízo definitivo sobre o tema.
William Shakespeare, por Élvio Funck
Shakespeare precedeu Freud em quatro séculos, pois põe seu bisturi bem fundo na psiquê humana. O divã de Freud se vislumbra em várias das peças de Shakespeare, como quando, por exemplo, em Macbeth, Malcolm diz para Macduff que não deixe de expressar suas angústias, para que seu coração não arrebente, ou quando Hamlet se vê obrigado a calar sobre a dor que o oprime ao ver seu tio adúltero e incestuoso e sente que seu coração se dilacera.
Wisława Szymborska, por Moema Villela
Em Szymborska, é evidente a impossibilidade de um conhecimento total sobre o universo e a vida. Ao mesmo tempo, a disposição incansável de contemplar o mistério parecia permear o sorriso de Mona Lisa onipresente nos olhos da poeta, tão colados à sua imagem quanto os cigarros fumegantes das fotografias. A agudeza das apreciações da poeta penetra os objetos mais inesperados, voltando-se a pequenezas domésticas e adotando, para observá-las, ângulos singulares.