Muros e cercas separam os Estados Unidos de uma guerra tão violenta quanto os conflitos que o país volta e meia trava do outro lado do mundo, sem ter essa guerra, entretanto, a dimensão política e diplomática das intervenções que fazem o país se colocar no controverso papel de xerife do mundo. A estrela de xerife veste melhor no conhecido território dos velhos caubóis e bandoleiros hoje conflagrado pelo poder quase institucional que o narcotráfico adquiriu no México: a fronteira sul dos EUA, pátio de barbáries que banham com sangue também o território americano.
As cenas iniciais de Sicario - Terra de Ninguém, em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira, ilustram, com alto impacto, o avanço geográfico de uma onda de violência forte o bastante para levar de arrasto os princípios éticos e morais que deveriam balizar sua contenção. E ao longo de duas eletrizantes horas, o cineasta canadense Denis Villeneuve mostrará, com a corda vibrando em máxima tensão, as razões que fizeram Sicario ser tão bem recebido na disputa pela Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2015. Deixou o certame francês sem prêmios, mas foi aclamado por crítica e público em todos os aspectos que constituem um filmaço: do ótimo trabalho de diretor e elenco à fotografia, assinada pelo bamba Roger Deakins, 12 vezes indicado ao Oscar, da assombrosa (em diferentes significados) trilha de Jóhann Jóhannsson ao roteiro enxuto de Taylor Sheridan, ator estreando no ofício da escrita cinematográfica.
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Sicario faz em seu título referência à figura ancestral do matador de aluguel, como aquele que reforça nas ruas o poder dos cartéis de traficantes, eliminando rivais, traidores e autoridades. No México de hoje, criminosos desse tipo costumam agir de forma espetacularmente macabra para demonstrar o poder de seus chefes e aterrorizar inimigos: sua vítimas, com corpos mutilados e cabeças decapitadas, são expostas em locais de grande circulação de pessoas.
A agente do FBI Kate Macer (vivida por Emily Blunt) conhecerá esse método peculiar de operação ao invadir um cativeiro mantido por traficantes do cartel mexicano no Estado do Arizona. A eficiência de Kate no trabalho de campo a faz ser recrutada para uma força-tarefa do governo comandada pelo escorregadio agente do Departamento de Defesa Matt Graver (Josh Brolin), da qual faz parte o nebuloso Alejandro (Benicio Del Toro, em atuação memorável), figura que sairá das sombras no correr da trama.
Está em andamento uma grande operação para caçar, em território mexicano, um chefão que estende seus tentáculos pelos EUA. Kate embarca na missão às cegas e logo vê o preto e o branco que segue em sua cartilha de conduta ser sugado por uma movediça zona cinzenta e amoral, na qual mocinhos e bandidos não podem mais ser distinguidos por suas ações. Diante de uma guerra suja, ela é forçada a compreender que as regras do combate são ajustadas conforme o propósito.
Denis Villeneuve já mostrou ser um cineasta muito competente diante de tramas de alto suspense emocional, como o drama Incêndios (2010) e o policial Os Suspeitos (2013). Com Sicario, ele subverte o que poderia descambar para um tradicional filme de ação bidimensional, com personagens arquetípicos e condução dentro das convenções narrativas familiares aos que apreciam o gênero. Segue uma trilha parecida com a de seu colega Amat Escalante, eleito melhor diretor em Cannes 2013 com Heli, sobre uma família operária desintegrada após se envolver involuntariamente com traficantes e policiais bandidos.
Sicario surpreende a cada passo. Tem sequências de ação engenhosas, como a que se passa no congestionamento de carros na fronteira entre México e EUA. Mas se impõe diante do espectador também como um contundente thriller político que furunga a complexidade das ações e reações do combate ao tráfico de drogas. É uma guerra sem ideologias que interliga um poder público corrompido dos dois lados da cerca, miséria social de um lado e, do outro, consumidores que, ao fim e ao cabo, alimentam com seu vício a sangrenta engrenagem. Sicario é um filme forte, desconcertante, do tipo que os muitos méritos tornam irrelevantes pontuais impasses - o personagem do policial mexicano corrupto que percorre a narrativa, embora secundário, parece um tanto frouxo diante da sólida construção dos demais. É um filme bem raro de se ver na atual linha de produção de Hollywood, que talvez não o valorize devidamente na temporada de premiações. O que não seria exatamente um mal sinal.
Sicario - Terra de Ninguém
De Denis Villeneuve.
Drama policial, EUA, 2015, 121min, 16 anos.
Estreia no circuito nesta quinta-feira.
Cotação: 5/5.