"O Brazil não conhece o Brasil, o Brazil nunca foi ao Brasil", cantava Elis em 1978 na música Querelas do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós. Muitas coisas mudaram de lá para cá, mas na essência esse desconhecimento permanece. Tanto permanece, que um projeto como Visceral Brasil (As Veias Abertas da Música) é capaz de surpreender e emocionar qualquer pessoa com alguma sensibilidade.
São 13 documentários sobre artistas populares de sete Estados, exibidos em 2014 pela TV Brasil e agora lançados em uma caixa de quatro DVDs. Com roteiros e direção da cineasta carioca Márcia Paraíso e curadoria da produtora cultural gaúcha Carla Joner, ambas experimentadas no trabalho com o universo da música de raiz, os documentários de 26 minutos cada são o que de melhor já foi feito no gênero, pelo conjunto e pela realização.
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Outros projetos, como o essencial Rumos, do Itaú Cultural, já mapearam o país; mas este é diferente. Além de mostrarem os artistas em seus ambientes (cidades, casas, cozinhas, famílias, parceiros), os documentários abrem o olhar para o entorno paisagístico, as marcas das regiões, com cenas de grande plasticidade. Acompanhando os sotaques, Márcia, Carla e a equipe da Plural Filmes conseguiram criar uma linguagem própria para cada episódio. Alguns têm interferência externa, como comentários de terceiros; outros restringem-se ao universo do artista ou grupo. A riqueza das expressões pessoais e artísticas, das vidas inteiras nos longes (quase todos são idosos, vários são desdentados), frequentemente produzem um nó na garganta do espectador, uma saudade indefinível do Brasil. Mas o que perpassa os filmes é a alegria.
Os personagens
Já relativamente conhecido, por ser uma instituição baiana, Mestre Bule Bule, 68 anos, é cordelista, cantador e sambador ligado à tradição sertaneja. "Patrimônio vivo" da Paraíba, a incrível Zabé da Loca, 91 anos, criou a família vivendo em uma caverna e tocando pífano. Pernambucano, Arlindo dos 8 Baixos tocou durante 23 anos com Luiz Gonzaga e deixou uma legião de seguidores. Cego e sem as duas pernas, tinha 71 anos quando gravou o documentário. Ícone do bumba-meu-boi de matraca, o maranhense Mestre Humberto deu seu depoimento aos 74 anos. Os tambores marcam a liderança de Dona Maria do Batuque, 82 anos, que vive em São Romão, norte de Minas. Outro de Pernambuco, o grupo Coco Raízes de Arcoverde mescla raízes indígena e negra. A herança afro também move o grupo Zambiapunga, do sul da Bahia.
São de Belém do Pará os três personagens mais "da moda" do Visceral Brasil: Mestre Laurentino, roqueiro de 88 anos, que só canta com banda de jovens; Mestre Vieira, 81 anos, tido como o criador da guitarrada; e Dona Onete, 77 anos, mestra na história da Amazônia, uma das definidoras do carimbó. Do extremo Norte, Rondônia, o projeto traz as manifestações dos índios Suruí, com participação de Marlui Miranda. E os representantes do extremo Sul são GibaGiba, 74 anos na época da gravação, mestre do tambor de sopapo e da negritude gaúcha; e Pedro Ortaça, 73 anos, remanescente da geração que criou a música missioneira no RS, com sua ideia de romper fronteiras e cantar opinando.
GibaGiba e Arlindo dos 8 Baixos morreram em 2014, antes da estreia do projeto na TV. Mestre Humberto morreu em janeiro deste ano.
VISCERAL BRASIL (As veias abertas da música)
De 13 artistas e grupos
Box com quatro DVDs. Projeto contemplado pela Ancine, patrocínios Vale e Chesf, Plural Fimes, distribuição Tratore, R$ 115.
ANTENA
BOSSA É BOSSA
Vários conjuntos
Na virada dos anos 1950/60, sob o impacto da bossa nova, o Rio de Janeiro fervilhava de conjuntos que faziam o público dançar em boates e clubes. Seu estilo era uma criação da época, o sambalanço, mesclando samba, bossa, jazz e música latina, e repercutiu no país inteiro - em Porto Alegre, o destaque foi Norberto Baldauf. Mas a memória desses conjuntos permaneceria escondida não fosse um pesquisador como o carioca Marcelo Fróes, que agora lança esta caixa com cinco CDs, cada um reunindo dois LPs, de três conjuntos marcantes, liderados pelos mineiros Celso Murilo (órgão, piano) e Célio Balona (vibrafone, acordeão) e pelo capixaba Hélio Mendes (piano). Eram muito bons. Algumas músicas: Samba do Avião, Falsa Baiana, Insensatez, La Bamba, Tender Is the Night, Na Cadência do Samba, Stella by Starlight, Mas que Nada, Dans Mon Ile, A Fonte Secou, Al Di La, Atire a Primeira Pedra, Bossa na Praia. Discobertas, R$ 110,90
MARIANA BRANT
Interpreta Geraldo Vianna e Fernando Brant
Este disco estava com show de lançamento marcado quando Fernando Brant morreu, em 15 de junho último. Foi feito para lançar a sobrinha Mariana como cantora e comemorar os 15 anos de parceria com Geraldo Vianna. Agora, pode ser visto como um testamento do principal letrista do Clube da Esquina. Ele participa recitando pausadamente, entre uma canção e outra, fragmentos de um texto poético-filosófico sobre Minas Gerais ("A nação brasileira aqui se sintetizou") e sobre o mineiro, que "ama o silêncio e a música, e ouve mais do que fala". É um álbum lento, pensativo, característico do trabalho com Vianna. Acompanhada por violão (Vianna), piano (Kiko Continentino), às vezes orquestra de cordas, a voz suave de Mariana acentua a sensação de doce melancolia em canções como Cinema, O Beijo, Trem, A Travessia e Pavane, esta com letra sobre música de Gabriel Fauré. Três Pontas Brasil/Tratore, R$ 25
SOBRE ANJOS & GRILOS
De Deborah Finocchiaro
Uma das mais reconhecidas atrizes gaúchas, Deborah comemora 30 anos de carreira em 2015. Em 2016, seu espetáculo teatral/poético/musical sobre Mario Quintana fechará 10 anos em cartaz. Motivos especiais para lançar em CD a íntegra do show e anunciar para 10 de novembro, no Theatro São Pedro, a gravação do DVD. São dezenas de poemas e trechos de entrevistas amalgamados com muita competência para transmitir as várias faces de Quintana - o lírico, o irônico, o afetuoso, o sarcástico. Em todas, a atuação de Deborah é brilhante. Criada por Chico Ferretti, que toca vários instrumentos, e com Celau Moreyra nos violoncelos, a trilha musical sublinha a felicidade da montagem e ressalta-se mais ainda no disco - aliás, o disco redimensiona Sobre Anjos & Grilos, um espetáculo à altura do homenageado e que tem a participação especial da voz de Paulo José. Fumproarte, R$ 35, contato www.deborahfinocchiaro.com