Menos de um ano após a estreia de seu quinto longa-metragem, o documentário sobre jornalismo O Mercado de Notícias, Jorge Furtado lança o sexto. Em cartaz nos cinemas, Real Beleza narra uma história que começa com a chegada de um fotógrafo caça-talentos (interpretado por Vladimir Brichta) ao interior gaúcho e engrena quando ele conhece uma aspirante a modelo (Vitória Strada) e, principalmente, a mãe dela (Adriana Esteves). Trata-se de um drama romântico, bem diferente, na forma e no conteúdo, do filme anterior. MAIS RECONHECIDO CINEASTA DO RIO GRANDE DO SUL NOS ÚLTIMOS ANOS, Jorge Furtado é assim: passeia de um assunto a outro com a mesma naturalidade com que "desliga a chave" do cinema e liga a da TV - para a qual realizou a maior parte de seus trabalhos desde a década de 1980. Nesta entrevista, fala sobre o público e explica por que seu novo longa estreia na semana do Festival de Gramado - ignorando o evento. Discorre ainda sobre seus outros temas preferidos, como a política e o jornalismo, e um assunto que considera incontornável: a violência e a intolerância na sociedade atual.
Vladimir Brichta mostra faceta dramática em Real Beleza
Como foram as filmagens de Real Beleza em Garibaldi
Em 2013, Jorge Furtado falou a ZH sobre Real Beleza e outros projetos
Antes de Real Beleza (2015) e O Mercado de Notícias (2014), você ficou sete anos sem lançar um longa nos cinemas (Saneamento Básico - O Filme estreou em 2007). Mas fez muita TV nesse período. A volta é uma coincidência ou evidencia uma vontade de se dedicar mais ao cinema?
É uma coincidência. O trabalho em cinema, no Brasil, é tão imprevisível, que você tem de atuar em várias frentes, sem saber quando vai conseguir finalizar seus projetos. Terminei o roteiro de Real Beleza muito tempo antes de filmar, mas tivemos de nos adequar primeiro às agendas dos atores, depois ao calendário de lançamentos. Aconteceu algo semelhante com O Homem que Copiava (lançado em 2003), que era para ser meu primeiro longa mas acabou saindo só depois de Houve uma Vez Dois Verões (2002). É uma questão de contingências: às vezes um projeto anda mais do que o outro e as expectativas não se confirmam.
Mas houve mudanças nos últimos anos. O cinema apresenta uma divisão escancarada entre os blockbusters de Hollywood, com suas histórias infantilizadas e bilheterias cada vez maiores, e os filmes autorais, cada vez mais restritos ao circuito alternativo. A TV, especialmente a produção dos EUA, parece se aproveitar disso fisgando um público mais intelectualizado. De alguma forma isso pesa nas suas escolhas?
De fato, esses dois fenômenos de mudança de público existem. Nunca pensei em ligá-los um ao outro, mas faz sentido que eles aconteçam paralelamente. Eu não chamaria os filmes restritos ao circuito alternativo de "autorais", porque isso todos são. Quem sabe não usamos o termo "úteis", ou "consequentes"? Minha preocupação é fazer trabalhos que tenham durabilidade, que não sejam esquecidos logo depois de vistos. Não sou contra o entretenimento puro e simples, mas meu objetivo é apresentar algo que seja debatido, visto de novo, enfim, tenha uma vida útil maior. Mesmo se levarmos em conta a produção nacional, esse hiato de que você fala é muito visível: antes havia os filmes de 1 milhão de espectadores e os de 100 mil. Hoje, o que há são os de 2 milhões e os de 50 mil, e muitas vezes bem menos do que isso, 5 mil, 1 mil ingressos vendidos. Mas acho que essa situação talvez se explique, em primeiro lugar, pela falta de espaço para tanto filme brasileiro. Em um ano, há cinco ou 10 projetos "maiores", feitos para o grande público, e outros cem "menores". É claro que os espectadores vão se dividir entre esses cem, e aí os números de cada um acabam sendo menores. Quem é que vê tanto filme?
Séries de TV, em compensação, as pessoas veem muito: cada temporada de uma série tem 10 horas, às vezes 20 horas de duração.
A mim parece claro que a inteligência criativa, de uma forma geral, migrou para a televisão. O que o cinema e a TV alcançaram, no século 21, não pode ser comparado. Não consigo citar cinco filmes lançados desde os anos 2000 que se comparem a Breaking Bad, The Sopranos e Mad Men. É interessante fazer o exercício de comparação tendo em vista o que acontece nos EUA, nesse sentido: Hollywood virou uma megaindústria interessada não apenas em vender filmes, mas em apresentá-los em 3D e Imax, com combos de comida, bonecos e produtos diversos, e os caras da criação foram para a TV. Hollywood virou uma meca de produtores, mesmo, enquanto os autores foram escrever e dirigir séries. Em seguida, como era de se imaginar que acontecesse, acabaram levando os atores junto com eles. E aí a gente abre o jornal na página da programação dos cinemas e não sabe a que assistir. Olho a programação adulta de cabo a rabo e acabo indo parar em Divertida Mente, que está na seção infantil. É o paradoxo atual: há o cinema americano infantil, que oferece ótimas opções, principalmente da Pixar, e há o cinema americano infantilizado, que é quase todo o resto.
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Neste cenário, que tipo de público você espera encontrar com Real Beleza?
Pois é, o filme não é uma comédia popular, gênero que faz muito sucesso no Brasil, nem um desses projetos que só vão ganhar espaço no circuito mais alternativo. É um filme médio, que fica no meio do caminho. O que eu espero? Que muita gente vá vê-lo. Como são umas 40 cópias em todo o país, imagino que dê para atingir 100 mil espectadores. Se chegar a isso, ficarei feliz. Mas o que almejo mesmo é que Real Beleza alcance gente que goste de cinema como eu gosto. Ou seja, gente que queira se divertir vendo um filme, mas também procure nele uma reflexão, uma maneira de pensar o mundo, de senti-lo, entendê-lo.
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Este é o modelo de cinema ideal para você, algo que uma entretenimento e reflexão?
Sim. A peça do Ben Johnson que deu origem a O Mercado de Notícias começa com uma citação de Cícero (filósofo romano do século 1 a.C.): "O poema ensina ou delicia. Ou ambos - e este é o que vicia". É isso. Quando um filme ensina, ele é bom. Quando delicia, também. Quando faz as duas coisas, aí é perfeito. Um exemplo é o francês Samba (que está em cartaz nos cinemas): é uma comédia romântica boa de ver, mas que nos faz refletir sobre o mundo. Há longas que cumprem só um desses dois objetivos - e não apenas aqueles que só entretêm, que vemos à noite e na manhã seguinte já nem lembramos mais. Há os que só ensinam, ou melhor, querem ensinar, mas ficam tão longe de deliciar que só entediam.
Em um post recente em seu blog, você afirma que ficou meses sem escrever "por achar que o debate político estava tão alterado, que a atitude mais sábia era o silêncio". Por que você mudou, dizendo, no mesmo post, que, "quando o fascismo cresce, silenciar é ser cúmplice"?
Três eventos específicos: a ameaça de morte a Jô Soares depois de ele ter entrevistado a presidente da República, a agressão a Guido Mantega em um restaurante e a covardia contra um sujeito que lia uma revista em um avião. Não dá para ficar quieto diante desse tipo de episódio. É fascismo, sim. No início de Cabaret (filme de Bob Fosse de 1972), nazistas agridem um judeu. Um nobre alemão comenta algo do tipo: "Tudo bem, a gente deixa eles acabarem com os comunistas e depois os controlamos". Mais adiante fica claro que o tempo passou e não havia mais como pará-los. O problema do fascismo é este: ele vai indo, com as pessoas livres para serem preconceituosas, até que se chega a um ponto de intolerância que descamba para a violência. Resolvi voltar a me manifestar para dizer isso: não está tudo bem quando se amarra alguém em um poste para linchar até a morte. Não que faça diferença eu dizer algo, mas não me sinto bem ficando calado diante disso.
Você é um artista de projeção nacional, sua manifestação pode fazer diferença, sim.
Sinto que muita gente não queria se meter vendo que era difícil construir algo produtivo ante a total falta de controle do debate público. Mas não se pode calar. Há uma velha regra que indica que é melhor não bater em quem gosta de apanhar. Realmente, há gente que se sente motivada a fazer uma estupidez quando lê ou ouve idiotices. Isso está acontecendo a toda hora. A fama praticamente virou sinônimo da infâmia. As pessoas querem aparecer de qualquer jeito, como se houvesse uma disputa para ver quem diz a maior barbárie. Quando parecia que o debate sobre a diminuição da maioridade penal havia atingido a infâmia total, o relator Laerte Bessa (PRDF) se diz esperançoso de que a ciência avance para nos permitir identificar criminosos antes do parto e, assim, abortar a gravidez. Ou seja, há coisas piores do que o Eduardo Cunha na presidência do Congresso. A ignorância e a falta de limites podem ser maiores. Nem Hitler foi tão infame quanto esse deputado.
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Você concorda que a infâmia está em todos os lados? Que as manifestações de intolerância surgem das mais variadas correntes políticas?
Sim. O que, inclusive, tem tornado o debate político ridículo. Há alguém contra a diminuição da violência? Alguém acha que a saúde pública não deve melhorar? Em vez de se discutir como alcançar o que todos desejam, as pessoas se acusam de não querer isso. A diminuição da maioridade penal é uma tentativa de reduzir a violência, correto? Por que não se debate analisando as experiências de outros países? Está provado, por exemplo, que a pena de morte não reduz a criminalidade. Isso deveria estar superado. Mas a questão sempre volta, com argumentos do tipo " um vagabundo a menos" ou "se não matar, o criminoso fica impune". O criminoso não fica impune. Se a Justiça decide que alguém matou, este alguém vai preso. Podemos discutir a eficácia da Justiça, mas não a da pena de morte. Só defende isso quem não tem argumentos racionais. Quanto à diminuição da maioridade penal: abre-se o caminho para a prostituição infantil, para a pornografia com adolescentes. Então é preciso tomar cuidado, pensar, avançar no debate. Mas o que vemos é a tentativa de impor um ponto de vista desqualificando o outro.
Quando cita o debate político, você está falando sobre a sociedade em geral ou especificamente sobre as discussões no âmbito do Congresso?
O debate público, no Brasil, vem sendo pautado por bandidos. A começar pelo Roberto Jefferson, bandido confesso - como esse bando de delatores premiados que estão nos noticiários. O que réus confessos de roubo falam sobre quem mais roubou precisa ser bem medido. (O doleiro Alberto) Youssef, por exemplo, é reincidente. No escândalo do Banestado, entregou muitos. Mas não todos. Alguns ele não entregou. Como o (José) Janene. Que, talvez, foi quem o botou na Petrobras. No fundo, é sempre uma briga para se manter no poder, ou voltar ao poder a qualquer custo. E nós, que não estamos longe da política partidária, sofremos as consequências disso. Ficamos cada vez mais intranquilos quando nossos filhos saem à noite, vemos a educação pública se deteriorar... Enquanto não evoluirmos no debate, formos pautados por bandidos e transformarmos as discussões em uma guerra de acusações, como esses bandidos costumam fazer, vamos permanecer nessa situação.
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Qual o papel do artista neste cenário?
Todos devem dar opinião e participar da vida pública. Quem é mais conhecido deve tomar mais cuidado, porque aquilo que fala pode ter maior ressonância. Eu procuro embasar bem minhas opiniões. Não denunciar algo sem ter evidências.
Diretor de Tropa de Elite (2007-10), o cineasta José Padilha é um artista que deixou o Brasil após se envolver no debate sobre segurança. De Los Angeles, onde vive, revelou ter escapado de uma tentativa de sequestro feita por policiais...
A segurança é o principal problema atual do Brasil. Estamos em um nível inacreditável, com mais de 50 mil mortos a bala por ano. Não sei se há guerra no mundo, hoje, com números parecidos. E os mais pobres sofrem mais, como sempre. O número de brancos assassinados está caindo, enquanto o de negros cresce. Desses 50 mil, 30 mil são jovens, e a maioria, negros (77%, segundo dados da Anistia Internacional). É uma guerra. Esses dados são reais. É o que eu dizia antes: é preciso dar opinião com base em fatos concretos. Tem sido cada vez mais comum ler teses baseadas em furadas. As pessoas veem uma manchete e saem compartilhando tudo, e às vezes trata-se de algo velho ou, pior ainda, sem pé nem cabeça. O Facebook, nesse sentido, é um perigo. Mesmo sem conhecer o Facebook quando tive a ideia de O Mercado de Notícias, lá por 2006, o fiz tendo justamente isso em mente: a importância da função do jornalista, que é checar informações, ouvir fontes e compartilhar os fatos de maneira o mais próximo possível da verdade. Nesse vale-tudo em que vivemos, com boatos espalhando-se a todo instante, o jornalismo é ainda mais importante. É uma profissão fundamental. Eu diria que não há democracia possível, atualmente, sem um bom jornalismo.
Mas você tem criticado o jornalismo que se faz no Brasil. Em O Mercado de Notícias, defendeu que os veículos da chamada grande imprensa têm feito uma oposição mais feroz aos governos do PT, na comparação com seus antecessores.
Aprendi muitas coisas fazendo o filme. Uma delas é que o comportamento da imprensa mudou muito a partir do golpe de 1964. Os veículos que até então eram identificados com tendências políticas diferentes, muito particulares, foram unânimes no apoio ao golpe, e a partir de então tomaram posições de maneira mais ou menos uniforme, em geral de apoio ao governo. Foi assim com Tancredo, Sarney, Collor e FHC. Uma exceção foi o momento da queda do Collor. A imprensa só foi se redescobrir oposição, mesmo, em 2002. Não por coincidência, quando alguém da outra turma, de uma classe que não a dominante, assumiu o poder. Não que haja uma articulação entre jornalistas ou donos de jornais. Não é isso. Mas essa reflexão me parece que pode ser feita.
Uma grande questão envolvendo não apenas o jornalismo, mas a sociedade como um todo, é o fato de que as pessoas estão tendo acesso a mais informações, mas estão consumindo-as com menos profundidade. Preferem textos curtos e, muitas vezes, sobre amenidades. Esse público é o mesmo que consome massivamente o cinema infantilizado de Hollywood. Você concorda com isso? Se sim, qual é a origem desse movimento: a oferta de informações está mais superficial e infantilizada ou o público quer isso e apenas é atendido pela imprensa, pelo cinema etc.?
Várias questões estão envolvidas nesse raciocínio. Por um lado, é ótimo que haja mais acesso à informação. E que os jovens de hoje leiam tanto, ainda que no computador, e textos curtos. É claro que o tipo de leitura muda da tela do tablet para o papel. Grande Sertão: Veredas não é para ser lido no smartphone. Mas é importante não combater o avanço da tecnologia. Os grandes pensadores da antiguidade usavam a oralidade para registrar suas obras. Não escreviam; preferiam falar. O livro, quando surgiu, foi na contramão do que havia antes. É algo semelhante ao que ocorre agora. A tecnologia ajuda. É boa. Agora, não adianta ter Shakespeare completo no bolso e não ler. Para ter conhecimento, é preciso ir atrás de informação com profundidade. No fundo, esse movimento depende do leitor.
É que há muitos estímulos, muitas outras leituras a fazer. Dedicar-se a algo aprofundado demanda se desprender do que é superficial.
É um dos lados ruins desta realidade com fartura de informações. O Homem que Copiava (2003) era um pouco sobre isso. O protagonista ficava lendo trechos das páginas fotocopiadas; só conseguia ler um pouco até que a página seguinte caísse por cima. Eu mesmo, que sou leitor antigo: confesso que fiquei muito feliz ao ver que o novo livro do Umberto Eco, que saiu há pouco (Número Zero), era bem mais curto que os tijolões que ele havia lançado anteriormente. Nosso comportamento mudou de uma maneira geral. Eu leio menos livrões, isto é um fato.
Voltando a Real Beleza. O filme só passou em um festival antes de estrear no circuito de cinemas, o Cine Ceará, evento de perfil semelhante ao do Festival de Gramado - ambos são dedicados à produção latinoamericana. E Real Beleza estreia na semana em que começa Gramado. Você não pensou em apresentar o filme no festival gaúcho?
Só bolamos essa estratégia de lançamento por questões de calendário. Por nenhum outro motivo. A data que a distribuidora conseguiu foi esta, e o festival que estava disponível um pouco antes disso era o Cine Ceará. Mesmo que quiséssemos muito fazer a première em Gramado, não teríamos como.
Para você, é importante apresentar um filme em um festival antes de levá-lo ao público?
Não. Cada vez menos. O que de fato é importante é juntar os jornalistas com os atores em um local para que todos vejam o filme e possam entrevistar o elenco e a equipe. Esse papel os festivais cumprem bem. Mas, para o mercado, para a carreira de um longa, perderam completamente a importância. Hoje não existe um exemplo de filme que ganhou o Festival de Gramado, ou o de Brasília, e por isso chamou a atenção do público e fez uma boa carreira no circuito. É quase o contrário. Se você pegar os vencedores das últimas 10 edições de Brasília, que é um evento com perfil bem político e autoral, e somar os seus públicos, vai ficar assustado. Gramado talvez não seja um caso tão radical, mas é igualmente assustador. Os chamados "filmes de festival" não levam mais ninguém aos cinemas. É claro que isso não tem a ver com qualidade, há coisas boas nos festivais - Branco Sai, Preto Fica (2014) me impressionou muito, por exemplo -, mas que estão muito distantes dos espectadores. Há esta separação: os filmes para os festivais e os filmes para o público. E aqui eu também busco o meio do caminho. Quero diversão e também reflexão. Não abro mão de falar com o espectador. Quero filmes úteis. Que divirtam mas que não sejam esquecidos no dia seguinte.
Com a palavra
Jorge Furtado: "Quero reflexão e também diversão. Quero filmes úteis"
Em entrevista a ZH, cineasta fala sobre seu nome filme "Real Beleza" e discorre também sobre política, jornalismo, violência e a intolerância na sociedade atual
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