Na exposição "Corte Seco", de Alberto Bitar, o visitante não tem escolha: torna-se testemunha de um cenário de choque imediato, como espectador de uma violenta ritualização da morte.
As fotografias que mostram cenas de assassinatos com os corpos das vítimas encobertos ao chão e cercados por curiosos que assistem a tudo, inclusive crianças, oferecem não só imagens indesejáveis, mas uma teatralidade banalizante que confronta qualquer indiferença frente à brutalidade corriqueira que acomete comunidades pobres dos grandes centros. O tom lúgubre desse conjunto de imagens é reforçado pela ambientação soturna gerada pela sala de paredes pretas da Galeria Lunara, no 5º andar da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre.
Confira entrevista com Alberto Bitar e reportagem sobre a exposição
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Vencedora do prêmio Marc Ferrez 2012, a série "Corte Seco" foi exibida no mesmo ano na 30ª Bienal de São Paulo e chega a Porto Alegre em uma realização da Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria da Cultura da Capital.
Natural de Belém do Pará, Bitar tem uma produção voltada à fotografia e ao vídeo, movimentando-se entre o fotojornalismo profissional e uma produção artística mais autoral. Um dos pontos altos de seu trabalho é justamente embaralhar essas categorias.
Muitas de suas fotografias trazem a paisagem como recorrência, e quase todas se valem do tremido e do desfoque, num gesto que toma a noção de precariedade técnica como uma estética consciente e os efeitos da longa exposição como um recurso intencional. Seja trabalhando com imagem fixa ou em movimento, o artista faz da passagem de tempo, da transitoriedade e da memória alguns de seus interesses privilegiados, com trabalhos envoltos em uma atmosfera onírica e melancólica.
Em "Corte Seco", contudo, Bitar vai ao encontro da realidade crua. Aparece ali o repórter fotográfico que se desloca a coberturas policiais de crimes na violenta periferia de Belém. Ele registra cenas de assassinatos e, ao usar o recurso da longa exposição, obtém como efeito luzes estouradas dos postes e dos carros da polícia e ambulância, tornando essas imagens um tanto fantasmagóricas, a ponto de borrar não só o cenário e as testemunhas, mas qualquer clareza sobre o que é jornalístico ou encenado, real ou inventado.
O aspecto indicial da fotografia ainda nos lembra que o fotógrafo é também uma testemunha de corpo presente na cena do crime, pois essas imagens somente são possíveis porque ele está ali, posicionado sua câmera, enquadrando seu assunto, mesmo que ausente dos fragmentos de realidade que capta em suas tomadas. O tema da morte leva também a pensar o óbito de qualquer crença no registro fotográfico documental como verdade, sinalizando que toda verdade é uma invenção em si ou, no mínimo, um registro apenas parcial.
Se há um tom político em "Corte Seco", ele vem dos ambientes em que padecem as vítimas de facadas e tiros, que denunciam que as imagens tratam da violência que acomete as periferias urbanas. Algumas dessas fotografias parecem ser tão encenadas a ponto de gerar uma espécie de mal-estar: a realidade se torna estetizada a ponto de parecer encenada, fazendo com que seu conteúdo violento e chocante seja esvaziado.
E é justamente por nos deixar desacomodados entre o documento e a encenação, a indiferença e o desconforto, a passividade e a indignação, que essas imagens encontram na teatralidade da banalização da morte uma potência de consciência e revolta.
CORTE SECO - ALBERTO BITAR
Visitação de terça a domingo, das 10h às 21h. Até 14 de junho.
Galeria Lunara, no 5º andar da Usina do Gasômetro (Av. Presidente João Goulart, 551), em Porto Alegre, fone (51) 3289- 8133. Entrada gratuita.
A exposição: primeira individual do fotógrafo paraense Alberto Bitar em Porto Alegre apresenta sua releitura poética de cenas reais de crimes em Belém.