Com um mercado cativo em festivais, bailes, rodeios e festas campeiras, mais duas gravadoras dedicadas a ela, a música regional gaúcha vai desviando da crise. Curiosamente, as gravadoras Acit e Vertical não surgiram em redutos tradicionalistas como Uruguaiana, Passo Fundo ou Santa Maria, mas em Caxias do Sul, rara cidade grande do Estado que nunca conseguiu manter um festival nativista. Mas é a Meca de grupos e artistas em busca de circulação estadual, lançando dezenas de títulos por ano.
Ao mesmo tempo, cada vez mais nomes significativos desse panorama com vida própria organizam-se para manter a carreira em plena atividade sem depender de terceiros. Cada vez mais usam a internet e investem em redes sociais. Confira as páginas virtuais de Marcello Caminha, Luciano Maia, Pedro Ortaça, Os Monarcas e Beto Caetano, por exemplo. Também se multiplicam portais dedicados a divulgar e vender os produtos da chamada cultura gauchesca. Claro que nela estão de artistas precários a artistas do nível destes comentados aqui - como ocorre na música brasileira em geral.
* Jornalista, crítico musical e colunista do 2º Caderno
VIOLONISTA PURO-SANGUE
MARCELLO CAMINHA
Influência
Dificilmente outro violonista gaúcho terá o nome em tantos festivais (uns 200), prêmios de melhor instrumentista (mais de 50) e discos (cerca de 60, dos mais diferentes nomes). Para além dos números, no entanto, é a qualidade que vale. Basta dizer que o violão do bageense Marcello Caminha criou um estilo, a sonoridade limpa acentuando o ritmo, o fraseado colorido sem perder o foco, o rigor formal fazendo par com a naturalidade. Tudo isso transparece neste primeiro DVD, gravado ao vivo no Teatro de Câmara, em Porto Alegre, com Matheus Kleber (piano, acordeão), Felipe Alvarez (baixo) e Marquinhos Molinari (percussão). É um grupo completamente diferente do que gravou em 2008 o CD Influência, seu primeiro trabalho 100% autoral. A retomada do projeto, em outro formato, acentua o espírito formador de Caminha: "A convivência explícita dos ritmos brasileiros e latino-americanos", como ele diz.
Em quarteto, em trio, em duo e em solo, o roteiro mescla músicas do CD de 2008, como o chamamé La Província e a guarânia Pantaneira, e outras como Milonga Abaixo de Mau Tempo (Mauro Moraes), a mazurca Não Chores (Leonel Gomes) e a chamarra Campos de Palmas. Um dos momentos altos é a combinação de samba e zamba em Lua Cheia e em Influência, só com violão e percussão. O CD com as mesmas gravações e mais três sai simultanemente. À venda no site marcellocaminha.com, R$ 40 (DVD) e R$ 20 (CD). Show de lançamento no dia 9 de junho, às 20h, no Teatro do Sesc
E DÊ-LHE GAITA!
BETO CAETANO
Sentimento de Gaiteiro
Com 40 anos de carreira, 29 discos e milhares de bailes no currículo, o santiaguense Beto Caetano integra o panteão dos acordeonistas gauchescos. Seu estilo inconfundível ficou ainda mais próprio quando acrescentou à sua coleção de gaitas um acordeão Roland FR7X, que lhe possibilita extensa variedade de timbres. Por exemplo, violino e o sax que se ouvem no novo CD vêm do Roland. "Ele é o que melhor usa o acordeão midi, muitos tentaram e não conseguiram", avalia Luiz Carlos Borges. Beto diz que vinha fazendo discos muito parecidos, todos com baixo, bateria e tal, e neste decidiu mudar. Das 12 faixas, cinco têm violão, as demais "só" acordeão e alguma percussão leve.
Além de ser uma aula de ritmos gaúchos, o álbum ressalta a familiaridade de Beto com a melodia de efeito instantâneo. Entre os destaques, a arrabalera Sentimento de Milonga, a fantasia sonora Viagem Canção, a folclórica Os Três Bugios (que lá pelas tantas vira samba) e a clássica La Paloma. Os violões são os de Arthur Bonilla e Lucio Yanel, a percussão de Eloísio Vieira "Loló". Gravadora Vertical, R$ 14
LUCIANO MAIA
Janelas ao Sul
Nascido em Pelotas em 1980, aos 13 anos Luciano Maia já era visto como fenômeno nos festivais. Aos 15, integrando o grupo Quero-Quero, entrou na ronda dos bailes da qual emergiu como um gaiteiro pronto para a carreira solo - o primeiro disco viria em 1998. Ao mesmo tempo, acompanhou vários nomes em gravações e shows. Em 2005, foi um dos criadores do Quartchêto, inovador grupo instrumental que ganhou destaque no centro do país após ser selecionado pelo Itaú Cultural e que já tem três CDs. Depois de um álbum em que se mostrou também como cantor, Luciano retoma a trilha instrumental com este disco, oitavo da carreira solo. Ao lado de Paulinho Fagundes (violão), Rodrigo Maia (baixo) e Giovani Berti (percussão), mais Vagner Cunha (violino, arranjo de cordas), Bebê Kramer (acordeão), Ricardo Arenhaldt (pandeiro) e o mestre paulista Arismar do Espírito Santo (violão), ele passeia brilhantemente por ritmos gaúchos e manda ver em outros como baião e samba. Uma das melhores é Pra Onde o Sul nos Carregue. À venda pelo e-mail contato@lucianomaia.com, R$ 25
VÁRIOS
Tributo ao Tio Bilia
Lendário nome da gaita ponto, Antônio Soares de Oliveira (1906-1991) fez a fama com o nome de Tio Bilia e tem Renato Borghetti como seu principal discípulo, entre dezenas. Natural de Entre-Ijuís, na região das Missões, aprendeu a tocar sozinho e animou bailes dos 14 anos até praticamente o fim da vida. "Talvez o principal legado dele seja o de ter produzido música bem feita e fácil de tocar", resume Borghetti. Outros comparam Tio Bilia a "um grande tronco" e "uma árvore frondosa". Além do discípulo famoso (que, vale lembrar, dedicou um disco inteiro a Tio Bilia) em duas faixas, Vanerão Gaúcho e Farroupilha, estão neste inédito tributo Beto Caetano (no popularíssimo vanerão Missioneiro), Paulo Siqueira (Tio Bilia na Oito Baixos), Luiz Carlos Borges (18 de Outubro), Marinês Siqueira (Bugio Extraviado), Chiquito (Casório do Batista), Moacir Arruda (Chimanguinha) e os descendentes do patriarca, Arnóbio, Honeide, Odilon, Neron e Diego. Gravadas em vários estúdios, as músicas têm acompanhamento de violões e percussão. Gravadora Vertical, R$ 12,90
HERANÇA MISSIONEIRA
VÁRIOS
Tributo a Cenair Maicá
Um dos definidores da chamada música missioneira ao lado de Noel Guarany, Jayme Caetano Braun e Pedro Ortaça, Cenair gravou apenas quatro álbuns, entre 1977 e 1985, e fez do "cantar opinando" a sua legenda. Não deixava de falar de bailes, pessoas e paisagens, mas fustigar os poderosos e denunciar injustiças sociais era sua determinação, em plena ditadura. Neste disco, o produtor e gaiteiro Marcio Correia reuniu a enorme família musical dos Maicá para uma homenagem a Cenair no 25º aniversário de sua morte, aos 42 anos, no auge da carreira. Canções dele e de parceiros (Jayme, Gilberto Carvalho, Nenito Sarturi, Talo Pereyra), entre elas Baile do Sapucay, João sem Terra, Bochincho, Canto pra Juventude, Canto dos Livres, Rancheira do Tio Bilia, Rio da Minha Infância e Mágoas de Posteiro, são interpretadas pelos irmãos Valdomiro, Tato e Vitão, o filho Patrício, os sobrinhos Atahualpa, Araken, Armando, Vilson Júnior e Alexandre. Resultou um disco sério, homogêneo e simples (gaita, violões, baixo, percussão), mas eficiente. Gravadora Vertical, R$ 12,90
PEDRO ORTAÇA & FILHOS
"Eu, Noel e Cenair criamos uma maneira diferente de cantar, denunciando, protestando e registrando a história e a luta de um povo esquecido, explorado, mas cheio de encantos e essências", diz dom Ortaça. Essa maneira foi passada aos filhos Marianita (voz, bombo leguëro), Gabriel (voz, gaita de botão) e Alberto (declamação), todos também compositores e com carreira própria, que pela primeira vez fazem com ele um disco conjunto. Versos de três autores clássicos do gauchismo, Chico Ribeiro (Filosofia Campeira), Aureliano de Figueiredo Pinto (Nas Horas da Noite Morta) e Jayme Caetano Braun (entre eles Índio Vago) recebem melodias de Pedro e de Gabriel. Há parcerias com Vaine Darde, Carlos Omar Villela Gomes e outros, e uma da família inteira, Sonho Guarani. Os irmãos são talentosos, Marianita uma revelação, e o lado instrumental do disco, muito competente, tem as participações de Juliano "Bonitinho" Trindade, Lucio Yanel e Edison Campagna. Este é o décimo álbum de Pedro Ortaça (o primeiro é de 1977), que também tem um DVD. Acit Discos, R$ 11,90
CAMPEÃO DOS FESTIVAIS
JOSE FERNANDO GONZALEZ
Os Olhos do Poeta
A certidão de nascimento de Jose Fernando Gonzalez nos festivais nativistas foi a Calhandra de Ouro com O Grito dos Livres, na Califórnia da Canção de 1984. Era seu primeiro festival. A vitória em Uruguaiana abriu espaço para que se tornasse um dos principais letristas do RS, compartilhando a música com o Direito - nascido no interior de Pelotas, durante muito tempo foi promotor de Justiça. Suas letras refletem preocupação social com o meio ambiente e o homem do campo. Este primeiro disco reúne seis canções vencedoras de festivais, entre elas A Copla de Assoviar Solito (parceria com Luiz Carlos Borges), Os Olhos do Poeta (com João de Almeida Neto) e Chico Mendes (com Talo Pereyra), outras cinco finalistas e uma inédita, Rio Grande Vivo. São em maioria milongas, todas cantadas por ele, algumas com a participação dos parceiros. Em O Grito dos Livres, o convidado é Dante Ledesma, seu intérprete original. O time de músicos tem Arthur Bonilla, Samuca, Paulo Bracht, Texo Cabral, Miguel Tejera e Marco Michelon. À venda pelo e-mail bimedeiros@bol.com.br, R$ 20
O HOMEM DO BAILE
GILDINHO
Pra Quem Eu Tiro o Chapéu
Em ação desde o início dos anos 1970, Os Monarcas dividem com Os Serranos o posto de mais popular grupo de baile gaúcho. Para dizer o mínimo, ganhou cinco Discos de Ouro quando isto significava vender mais de 100 mil cópias, e segue animando de oito a 12 bailes por mês. Volta e meia, seu criador, o gaiteiro e cantor Nésio Corrêa, o Gildinho, 72 anos, pula a cerca e lança um álbum solo. Como este, ainda por cima duplo e com muitos músicos nos arranjos. Cantado, o primeiro CD começa com a faixa-título, em que ele tira o chapéu para amigos, parceiros, fãs, menos "para a tristeza do mundo". Comenta sua história em Eu e a Cordeona, homenageia Porca Veia em Gente Dançadeira e, no geral, não deixa de mostrar que, assim como os Bertussi, Gildo de Freitas também foi uma influência. Instrumental, mas não menos dançante, o CD 2 traz o Gildinho acordeonista universal, tocando choro, tango, valsa, em clássicos como Apanhei-te Cavaquinho, La Cumparsita, Clarinet Polka, Maringá, El Porteñito e Cascata de Lágrimas, ao lado de seu vanerão Duelo Esperto. Acit Discos, R$ 16,90
GAÚCHOS PARTICULARES
VALDIR VERONA e RAFAEL DE BONI
Duo de Viola e Acordeon
Caxienses, o violeiro Verona e o acordeonista De Boni já têm reconhecimento nacional no circuito das músicas de raiz, incluindo teatros e programas de TV como o do Rolando Boldrin. Seu trabalho em duo, que em 2015 completa 10 anos, é voltado para os ritmos do Sul, mas traz particularidades/sensações distintas da música que caracteriza os outros discos comentados nesta página. Enquanto a gaita de De Boni é mais suave, menos incisiva, a viola (10 cordas) de Verona produz uma atmosfera rarissimamente ouvida em nossa música, embora seja até mais ancestral do que a gaita - lembram aquele verso folclórico que diz que "a gaita matou a viola"? Neste primeiro DVD, eles mesclam composições próprias, como Pampeana y Arrabalera, Chacarera para Desvendar Caminhos e Das Bandas do Poente, com temas do folclore gaúcho (Prenda Minha, Balaio, Anu, Chula, Boi Barroso). Tocam, emendadas, Felicidade (Lupicínio) e Luar do Sertão (Catulo da Paixão Cearense/João Pernambuco). No meio do show, gravado ao vivo no Teatro Pedro Parenti, de Caxias do Sul, apresentam um convidado muito especial, Yamandu Costa, para tocarem juntos um choro deles, Devaneando, e o chamamé La Muerte del Índio (Oscar dos Reis). O público delira. Um disco aberto, de alta qualidade. Paralelamente, o duo lança um álbum de estúdio com repertório 60% diferente. À venda no site minuanodiscos.com.br, DVD R$ 29,90 e CD R$ 14,90
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