Perto do fim da intensa jornada em que passou duas horas cantando com a entrega pela qual é conhecida mais de 40 músicas do cancioneiro que marca sua carreira, Maria Bethânia parecia recompensada:
- Esse show é a minha história.
A cantora está em festa, comemorando os 50 anos do que considera ser sua estreia - o antológico espetáculo Opinião, no Rio de Janeiro, em 1965. Na quinta-feira à noite, ela apresentou o primeiro dos dois shows de Abraçar e Agradecer em Porto Alegre. Nesta sexta-feira (17/4), ela volta ao palco do Teatro do Sesi para mais uma sessão com ingressos esgotados.
Abraçar e Agradecer é um espetáculo intenso, que deixou maravilhada - e até certo ponto hipnotizada - a plateia que lotou a casa na estreia. A dramaticidade de Bethânia em seu modo de cantar ganhou uma ambientação cênica belíssima da diretora Bia Lessa. Além dos jogos de luzes, destacam-se as imagens e os textos que se alternam e movimentam na área retangular do palco em que Bethânia pisa. Uma ilustração das músicas, ressalve-se, sem excessos, mas com elegância e refino estético. Essa teatralidade confere um aspecto plástico ao espetáculo, que, se fosse somente vocal, já seria igualmente impactante e inesquecível.
O título Abraçar e Agradecer sugere uma divisão conceitual entre os dois atos do show. No primeiro, é como se Bethânia "abraçasse" o público com uma série de canções costuradas pela temática do amor e da paixão. Há Caetano Veloso (Eterno de Mim, A Tua Presença Morena, Nossos Momentos), Chico Buarque (Tatuagem, Rosa dos Ventos), Chico César (Dona do Dom), Gonzaguinha (Começaria Tudo Outra Vez), Tom Jobim (Dindi) e Raul Seixas (com uma empolgante releitura de Gita). Essas canções são entrecortadas por textos de Clarice Lispector recitados por Bethânia que elevam o espetáculo a um tom poético-literário.
No interlúdio, que marca a passagem entre os dois atos de Abraçar e Agradecer, Bethânia sai do palco e dá protagonismo ao excelente time de músicos que a acompanha: Jorge Helder (regência e contrabaixo), Túlio Mourão (piano), Paulo Dafilim (violas e violão), Pedro Franco (violão, bandolim e guitarra), Marcio Mallard (cello), Pantico Rocha (bateria) e Marcelo Costa (percussão). Eles tocam trechos de outros temas de Chico e Caetano, mas também de Luiz Gonzaga e João do Vale, em versões instrumentais, como uma colagem musical. O pot-pourri, aliás, foi o modo de amarração escolhido por Bethânia como forma de entrelaçar as canções do espetáculo por meio de trechos delas, praticamente sem intervalos entre as faixas - do contrário, Bethânia precisaria de pelo menos três horas para dar conta do extenso repertório selecionado.
No segundo ato, ela retorna ao palco para o momento que parece ser o de "agradecimento": a suas raízes e ao fato de poder ter chegado aos 68 anos comemorando cinco décadas de carreira. Há mais Caetano (Tudo de Novo, Eu e Água, Motriz) e Chico César (Xavante ), e também Dorival Caymmi (Oração de Mãe Menininha), Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro (Alguma Voz, Viver na Fazenda) e várias do baiano Roque Ferreira. Além de outros textos de Clarice Lispector, Bethânia recita Waly Salomão, Fernando Pessoa e Carmen de Oliveira.
Prestes a encerrar o segundo ato, Bethânia ofereceu um dos momentos mais catárticos da noite com as interpretações de Non, Je ne Regrette Rien, de Charles Dumont e Michael Vaucaire, eternizada na voz de Edith Piaf, e a inédita Silêncio, de Flávia Wenceslau, sua nova descoberta entre os compositores.
Ao final dos dois atos, com o público batendo palmas em pé, Bethânia voltou para o bis. Cantou, entre outras, O Que É, O Que É?, o clássico de Gonzaguinha: "Viver / E não ter a vergonha / De ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser / Um eterno aprendiz". A surpresa ficou por conta de uma belíssima interpretação de "É o Amor", o hino sertanejo de Zezé Di Camargo & Luciano.
Bethânia não precisa se esforçar para lembrar que é uma das maiores cantoras da história da música brasileira. Mas a interpretação que confere a cada canção, com seu gestual único e o domínio que tem do espaço em que se movimenta em palco, servem para relembrar o posto conquistado ainda nos anos 1970, quando despontou como uma das artistas da MPB que mais vendia discos no país.