Nas eleições municipais de 1959, Lupicínio Rodrigues foi convencido a candidatar-se a vereador de Porto Alegre pelo pequeno Partido Republicano - que abrigava tendências de esquerda proscritas, como o PCB. Ele topou o desafio e chegou a pagar nos jornais um "a pedido" com o título Por que Sou Candidato. Ao Jornal do Brasil, que mantinha ativa sucursal na cidade, resumiu sua plataforma:
- Sou conhecido por minhas canções, mas nunca tive oportunidade de servir à minha terra. Se vencer, tratarei da criação de uma creche para as mães solteiras e poderei fazer alguma coisa pela gente da noite, de onde saí e onde passo as horas mais gostosas de minha vida.
Os eleitores da Capital, tradicionalmente avessos a eleger artistas, não se convenceram. Lupi recebeu apenas 396 votos.
Essa é uma das tantas histórias contadas no livro Almanaque do Lupi 100 Anos, de Marcello Campos, que será lançado no próximo dia 26. Jornalista e pesquisador puro-sangue, Marcello vinha mirando em Lupicínio desde que publicou seu primeiro trabalho, Week-end no Rio (2006), sobre o Conjunto Melódico Norberto Baldauf. Considerando a dificuldade prática de biografar o gênio da dor-de-cotovelo, ele passou a "cercá-lo", começando a pesquisa, mais acessível, por dois personagens importantes em sua trajetória. Em 2011 veio o livro Minha Seresta - Vida e Obra de Alcides Gonçalves, que foi quem primeiro gravou Lupi e um de seus principais parceiros. E em 2013 saiu Johnson - O Boxeur-cantor, sobre o maior amigo, o compadre.
Então, Marcello já tinha um bom material quando, no início de 2014, para integrar as comemorações do centenário, Márcio Pinheiro, coordenador do Livro e Literatura da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, lhe encomendou a "biografia" de Lupi.
As citadas dificuldades (por exemplo, todas as fontes primárias de consulta já morreram) e a premência do tempo fizeram Marcello dar tratos à bola. Não tinha como fazer uma biografia tipo as do Ruy Castro. E veio a ideia do almanaque. Em quatro meses de pesquisas complementares e seis de redação ficou pronto o mais completo (e bonito) trabalho já feito sobre Lupicínio Rodrigues. O livro é organizado em capítulos temáticos; um texto de abertura enriquecido por pequenos textos, notas, e profusão de ilustrações.
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"Almanaque" tem texto fluente e histórias inéditas
Como crônicas, os textos principais seguem a trilha de Lupi em todos os detalhes, da infância na Ilhota ao mundo boêmio precoce, o Exército, as paixões, a vida doméstica, os amigos, o sucesso, preconceito racial, direito autoral, sucesso, futebol, lendas. E até inconfidências inéditas: havia na Faculdade de Direito "um zum-zum de que Lupi tivera como pistolão o desembargador André da Rocha (1860 - 1942), diretor da faculdade e supostamente seu avô biológico - parentesco, aliás, jamais admitido pelas famílias envolvidas ou confirmado em cartório". Mas a verdade é que tanto Lupi quanto seu pai foram protegidos de André da Rocha. O compositor trabalhou como bedel na Faculdade de Direito de 1936 a 1948, quando se aposentou por "invalidez", aos 34 anos, no auge da carreira musical.
O Almanaque do Lupi começa com a cronologia de sua vida e obra, entre 1880 (nascimento do pai em Canguçu) e 1974 (a morte no Hospital Ernesto Dornelles, dias antes de completar 60 anos). Trechos de letras de músicas pontuam todas as páginas. No final, está a lista das 286 canções conhecidas, registradas ou não em editoras, os discos gravados por ele e por outros, os livros e trabalhos acadêmicos sobre ele. Tudo sublinhado pelo bom humor e o texto fluente que caracterizam a escrita de Marcello Campos. A ótima edição de arte é de Rosana Pozzobon. O lançamento será no Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues, dentro da Semana de Porto Alegre.
ALMANAQUE DO LUPI
De Marcello Campos
Editora da Cidade, 102 páginas, R$ 40.
ANTENA - Lançamentos em disco
CARLOS CAREQA
Por um Pouco de Veneno
"Este disco é um antídoto para estas músicas fofinhas que nos cercam por todos os lados", escreve Careqa no encarte do segundo álbum que dedica às músicas de Tom Waits - o primeiro saiu em 2007. E ele acerta a mão em versões fulminantes do universo sombrio e cético do compositor norte-americano, ótimos arranjos (marcados pela presença constante de uma tuba) e interpretações que vão do mais áspero ao quase suave. O CD é uma porrada. Careqa adaptou algumas letras para o Brasil atual, como em Deus Saiu a Negócios ("Mas quem a gente colocou lá no poder?/ Assassinos, ladrões e juízes!"), em Me Perdi (em que encontra Leminski e Dalton Trevisan), e em Para o Nico, tocante homenagem a Nico Nicolaiewsky. Participações das cantoras Bruna Caram e Fabiana Cozza e de instrumentistas como Mário Manga, Márcio Nigro, Tiago Costa e Luiz Serralheiro Popo (o cara da tuba). BED/Tratore, R$ 24.
KILLY FREITAS E ANTONIO SKÁRMETA
Café Frio
Eis um trabalho fruto de oportunidade única. Compositor, guitarrista e violonista mais ligado à música instrumental, Killy conheceu o escritor chileno (autor de O Carteiro e o Poeta) por acaso, em uma feira do livro em sua cidade, Santa Cruz do Sul. E do nada surgiu uma parceria muito feliz. Café Frio é um lindo disco, sensível em suas canções de amor cheias de lirismo. Killy encontrou soluções melódicas perfeitas para os poemas de Skármeta, abriu um leque de ritmos (samba, jazz, milonga, chamamé) e criou arranjos à altura em instrumentação simples - basicamente violão, teclado, baixo e bateria, pincelados aqui e ali por violoncelo, sax, acordeão. Como tudo dá certo, ele também surpreende como cantor. E abre espaços para a bela voz de Bianca Obino. Victor Hugo, Pedrinho Figueiredo e Renato Müller aparecem em participações especiais. À venda nas livrarias Cultura e a Palavraria, R$ 22.
RENATO MOTHA
Menino de Barro
No quinto álbum solo (tem outros seis em parceria com Patrícia Lobato), inspirado na poética de Guimarães Rosa e Manoel de Barros, o compositor mineiro aprofunda o aspecto telúrico de sua música. Para dar uma ideia, praticamente todas as faixas começam com sons de águas (regato, rio, cachoeira etc.) e de pássaros. A natureza e o homem da terra são também os temas da maioria, como em No Rabo do Vento, Paisagem, Andarilho. Feito com voz, violão, vibrafone, percussão e a voz de Patrícia em quatro canções, é um trabalho que exala energia positiva: "Sou um pau-brasil, sou um sabiá, sou um Zé feliz", diz uma letra. Sintetizando, é um disco para pessoas que gostam de música contemplativa, zen, quase religioso no sentido amplo do termo. Renato Motha observa e filosofa. As músicas são lentas, com mínima variação rítmica. À venda em www.renatomothaepatricialobato.com/discografia, R$ 40.