Meados dos anos 1980. Policiais invadem um baile popular em Ceilândia, periferia de Brasília. Os brancos saem, grita um deles. Os negros, não. Vão ficar e apanhar.
Quase 30 anos depois, o cineasta Adirley Queirós, cria da cidade-satélite do Distrito Federal, volta ao episódio de maneira inventiva e, sob vários aspectos, arrebatadora. Branco Sai, Preto Fica, que venceu o Festival de Brasília e estreia em Porto Alegre nesta quinta-feira (no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim), é um filme de difícil classificação, que passeia com improvável naturalidade entre o documentário e a ficção científica, constituindo uma das melhores evidências do quão plural e criativo é o atual cinema autoral brasileiro - ainda que pareça inevitavelmente destinado a certos guetos.
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Queirós tem 44 anos. Natural do interior de Goiás, foi viver na então nova capital federal aos três, junto dos pais, que viam Brasília como uma terra de oportunidades. Acabou na Ceilândia, cidade criada para alojar os pobres que se aglomeravam em favelas na região central do Eldorado. É importante conhecer a trajetória do diretor: Branco Sai, Preto Fica traz um olhar de dentro, de quem vive no local e já vinha refletindo sobre ele em curtas como Rap, o Canto da Ceilândia (2005) e no documentário de longa-metragem A Cidade É uma Só? (2011).
Na cidade que deveria ser uma só, mas que não é a mesma para todos, os dançarinos de uma festa de black music foram espancados até ficar paraplégicos (caso de Marquim da Tropa) ou perder uma perna (o que aconteceu com Chockito). No filme, Queirós acompanha a vida de ambos, tantos anos depois, em atividades cotidianas (Chockito é artesão e usa sucata para produzir próteses para outros mutilados) e lúdicas (Marquim, que é DJ, reconstitui a tragédia fazendo música).
A linha tênue entre documentário e ficção não é o único objeto de interesse do cineasta. A narrativa se constrói de maneira livre contando também a história de Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), que vem de um futuro distante para buscar provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra os excluídos. A nave de Dimas nada mais é do que um contêiner em meio àquele cenário de pobreza e desolação. Mas, se a Ceilândia é feia, as composições dos quadros e o jogo de imagens diferentes (futuro versus passado, a alegria juvenil contrastada com a desesperança atual) revelam apuro estético e domínio da linguagem.
Branco Sai, Preto Fica é um filme libertador em mais de um sentido - não há amarras a prendê-lo, sejam elas de gênero ou construção narrativa. Há inclusive humor no olhar de Dimas, simbolizado, por exemplo, em seu testemunho da Dança do Jumento. E o que dizer do plano de vingança apocalíptica alimentado pelos personagens?
Só não há pieguice e autocomiseração em Branco Sai, Preto Fica. De resto, trata-se de um longa singular, que aponta caminhos para a expressão de quem nem sempre tem condições de se expressar, ecoando assim o cinema marginal dos anos 1960 e 70. Na verdade, fazendo uma ponte entre questões levantadas à época e o caos urbano e social do século 21 - vislumbrado, entre outros filmes, pelo curta-metragem gaúcho Se Essa Lua Fosse Minha (2014), produzido por alunos da Unisinos e vencedor do troféu de melhor curta nacional do mais recente Festival de Gramado.
A razão desse caos é múltipla, aponta Queirós. As vítimas, estas são sempre as mesmas.
Branco Sai, Preto Fica
De Adirley Queirós.
Drama/Ficção científica, Brasil, 2014.
Duração: 90 minutos.
Classificação etária: 12 anos.
Estreia nesta quinta-feira.
Em Porto Alegre, pode ser visto no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim.
Cotação: ótimo.