Em seu espaço aqui nesta coluna no sábado que passou, a amiga Shana Müller, numa excelente reflexão sobre os rótulos - e as inclusões ou exclusões acarretadas por eles - nas questões ligadas, principalmente, à canção regional gaúcha, acabou deflagrando uma oportuna discussão que segue ecoando nas redes sociais.
Leia outras colunas de Vinícius Brum
Shanna Müller: "Tem me cansado o uso do tal gentílico gaudério"
Esse assunto sempre foi faísca em galão de gasolina. Os anos 1980 e 90, aqui mesmo em Zero Hora, testemunharam acirrados debates sobre os rumos da nossa canção regional de inspiração rural, ou ligada a uma cultura pretensamente original, ou folclórica, ou ambas.
Os antagonismos acirravam ânimos, e "os da vanguarda" e "os conservadores" digladiavam-se naquilo que para mim sempre pareceu uma discussão de surdos. Raras eram as ponderações que tentavam compreender o fenômeno dentro de um espectro não apaixonado. Mas lá se vão 30 anos e parece que a chaleira ferveu novamente. E vale salientar: bem-vinda fervura!
Rótulos, por sua natureza sintética, são reduções. Quando digo "gaúcho", para recortar uma diferença, talvez só atinja, ainda que precariamente, meu objetivo se o cotejo estiver sendo dado com nortistas, nordestinos, caipiras paulistas ou outro indivíduo identificável no mapa brasileiro. Mas quando digo "gaúcho" aqui nesse nosso dicotômico "intramuros", necessariamente falo em muitos e também díspares: nenhum mais, nenhum menos em seu pertencimento à cultura rio-grandense.
A questão suscitada por Shana é ampla: cultura e mercado, arte e mercado, regionalismos, identificações etc. "Ser arrastado só pela emoção é sentimentalismo, não é arte", ensina Ernst Cassirer em seu Ensaio sobre o Homem. A bandeira da arte é a sua própria condição. Portanto, cabe ao artista, não ao crítico, nem ao público, o desafio de sua arte. E temos vários exemplos de autores que construíram maravilhas nas quais o povo se reconhece e canta. Belas canções ou canções "gaudérias"? Que se dê mais lenha à fome desse fogo!